Spike Lee tem 63 anos. Desde sua estreia em longas, há 34, com a comédia Ela quer tudo, o cineasta não parou um só ano de filmar. Já admitiu que sua flexibilidade – ele faz filmes, séries, documentários, clipes, comerciais – foi o que lhe permitiu estar sempre trabalhando. Ainda que seja adaptável, o cineasta norte-americano nunca mudou o seu propósito: colocar os negros – e o que significa ser negro nos Estados Unidos e no mundo, ontem e hoje – no centro de sua obra.
A chegada de Spike Lee à Netflix com Destacamento blood é o mais recente capítulo dessa história. Esse é o primeiro longa do diretor a ser lançado na plataforma que hoje lidera o mercado de streaming – mas não seu primeiro projeto, já que Lee produziu série e especial para a Netflix. Disponível desde a última sexta-feira (12), o drama de guerra está entre as maiores audiências do serviço – alcançou, no Brasil, o segundo lugar na audiência, segundo a Netflix.
Lançado em meio à onda de protestos antirracistas ao redor do planeta decorrentes da morte, por sufocamento, do negro George Floyd por um policial branco de Minneapolis, em 25 de maio, o filme não é fácil, ainda que sua mensagem seja clara e oportuna. Maior derrota militar da história norte-americana, a guerra do Vietnã (1955-1975) é vista aqui sob o viés dos negros, que lutaram uma guerra que não lhes pertencia e que foram utilizados como buchas de canhão no combate.
Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Norm (Chadwick Boseman) são irmãos de sangue (Das 5 blood é o título original) que combateram juntos no Vietnã. Dos cinco, Norm, líder do esquadrão, não voltou.
RETORNO
Passados 50 anos de sua incursão à guerra, o grupo de sobreviventes retorna ao país asiático. Quer recuperar o corpo de Norm da selva vietnamita e enterrá-lo, com as honras de um veterano, nos EUA. Mas não só. Há ainda milhões de dólares em barras de ouro que o grupo enterrou na selva durante o embate que matou o companheiro.
É uma história improvável contada com riqueza estilística e muitas mudanças de tom. Com farto material documental – o filme é iniciado com uma fala de Muhammed Ali e encerrado com outra de Martin Luther King –, muita música da época – Marvin Gaye, no álbum antibelicista What’s going on (1971), é quase um personagem da narrativa – e recheado de referências – as de Apocalypse now (1979), de Francis Ford Coppola, são as mais claras – Destacamento blood é um longa de camadas.
O tom irônico da parte inicial da narrativa, quando os quatro amigos, hoje idosos, se reencontram numa Ho Chi Minh contemporânea, logo ganha um forte teor dramático, a partir do momento em que o grupo chega à selva. Dos quatro sobreviventes, Paul é o que traz mais feridas da guerra. Não conseguiu se adaptar ao mundo, sofre com a perda de Norm décadas mais tarde e, ironia das ironias, é apoiador da gestão Trump.
É esse personagem, o de maior destaque no filme, que vai descortinando as principais questões que a narrativa traz. Injustiça social, falta de reconhecimento e de chances, a gradativa loucura de Paul vai sendo explicada em um longo voo solo do personagem, em um monólogo em que Delroy Lindo faz para a câmera, sozinho na selva.
VIAGEM
Com 2h30min de duração, Destacamento blood se perde em parte da segunda metade da narrativa, quando novos personagens se juntam aos veteranos. Há um francês negocista (papel do ótimo Jean Reno), que representa a figura do colonialista; os integrantes de uma ONG também francesa especializada em desativar minas terrestres; uma gangue vietnamita; e o próprio filho de Paul, que embarcou na viagem para tentar se aproximar do pai.
Ainda que a verborragia dos personagens e alguns caminhos que o filme toma façam a narrativa se alongar em alguns momentos, na parte final, quando o longa chega até o atual movimento Black Lives Matter, Destacamento blood consegue se resolver. Mais importante: como realização cinematográfica, consegue conversar com uma audiência diversa que precisa conhecer o passado para entender o presente.
>> DESTACAMENTO BLOOD
O filme de Spike Lee está disponível na Netflix
PAPO COM O DIRETOR
No próximo sábado (20), às 21h, a Cinemateca Americana vai promover um debate de Spike Lee com moderação do diretor Barry Jenkins (de Moonlight: Sob a luz do luar, melhor filme no Oscar de 2017) sobre Destacamento blood. O público poderá acompanhar o encontro pelo Zoom. Inscrições gratuitas pelo americancinematheque.com/da.5.blood/
FAZENDO A COISA CERTA
Confira outros trabalhos de Spike Lee disponíveis no Brasil*
>> ELA QUER TUDO (1986)
Em sua estreia em longas, o diretor apresenta uma crônica urbana sobre relacionamentos amorosos, ao acompanhar, com ousadia estética, a sexualidade de uma mulher negra.
Onde: Netflix
>> FAÇA A COISA CERTA (1989)
Marco na carreira de Lee, o filme acompanha os moradores de um bairro de diferentes etnias do Brooklyn em um único dia. A convivência diária cria tensões, até culminar em um conflito violento.
Onde: Telecine Play
>> MAIS E MELHORES BLUES (1990)
Um trompetista de sucesso entra em choque com um jovem músico em ascensão, o que o faz conhecer o fracasso.
Onde: Telecine Play
>> MALCOLM X (1992)
Cinebiografia aborda a vida de Malcolm X desde a juventude, quando acabou preso depois de um período no tráfico e como assaltante, sua conversão ao islamismo, até se tornar um grande orador, adotando uma linha radical na luta antirracista.
Onde: Amazon Prive Video e Claro Video
>> A ÚLTIMA NOITE (2002)
Aborda a guerra do tráfico de drogas na Nova York pós o 11 de setembro. Condenado por tráfico, um homem dedica seu último dia de liberdade para um acerto de contas com sua família e seus amigos.
Onde: Telecine Play
>> CÓDIGO DAS RUAS (2004)
Produção para a TV que acompanha três jovens (um branco, um chinês e um negro) que, vivendo realidades distintas, tentam demarcar seu território nas ruas.
Onde: Looke
>> O PLANO PERFEITO (2006)
Maior bilheteria do diretor, acompanha um assalto a banco. Além da ação, genial, o filme mostra o racismo e as relações de poder entre o bandido, o policial, o dono do banco e uma lobista.
Onde: Amazon Prime Video, Telecine Play e Paramount Mais
>> OLDBOY: DIAS DE VINGANÇA (2013)
Versão americana do sucesso homônimo sul-coreano sobre um homem mantido preso por duas décadas que, sem saber quem o sequestrou, terá três dias de liberdade para realizar sua vingança.
Onde: Telecine Play
>> CHI-RAQ (2015)
Musical inspirado na peça grega Lisístrata, de Aristófanes, transposta para a Chicago dos dias atuais. Mostra a greve de sexo comandada pela namorada de um traficante para tentar diminuir a violência no local.
Onde: Amazon Prime Video
>> ELA QUER TUDO (2017-2019)
Série com duas temporadas que acompanha Nola Darling, a personagem do filme homônimo dos anos 1980, suas conquistas amorosas e sua vida no Brooklyn nos dias de hoje.
Onde: Netflix
>> RODNEY KING (2017)
Especial gravado com o ator Roger Guenveur Smith em que ele interpreta, no palco, o homem negro que foi espancado pela polícia de Los Angeles em 1992, o que desencadeou violentos protestos naquela cidade.
Onde: Netflix
>> PASS OVER (2018)
Filmado em um teatro e com forte inspiração no cultuado Esperando Godot, de Beckett, mostra dois jovens negros jogando conversa fora numa esquina de Chicago, lugar do qual não conseguem sair.
Onde: Amazon Prime Video
>> INFILTRADO NA KLAN (2018)
Primeiro Oscar do cineasta (roteiro adaptado), acompanha a história real de um policial negro do Colorado que, no final dos anos 1970, se infiltrou na Ku Klux Klan.
Onde: Telecine Play