A Cinemateca Brasileira, que será comandada por Regina Duarte, enfrenta sua mais grave crise, seriamente ameaçada de fechar as portas. “Presumo que não se vá nomear alguém para encerrar a Cinemateca. Se a situação continuar como está, a Regina Duarte vai passar a chave na fechadura e ir para casa. Suspeito, por mais alucinante que seja a situação do Brasil e dos seus governantes, já ser um pouco demais nomear alguém para fechar. Presumo, então, que a presença dela indique que virá dinheiro”, afirma o cineasta Ugo Giorgetti sobre o anúncio de que a atriz administrará a instituição, que tem seus primórdios na São Paulo de 1940.
Giorgetti, ex-membro do Conselho da Cinemateca, está entre os signatários da carta pública, na verdade um pedido de socorro, divulgada na última sexta-feira (15). Considerada a maior da América do Sul, com 250 mil rolos de filmes e cerca de 1 milhão de documentos (cartazes, livros, fotografias), a Cinemateca Brasileira enfrenta uma situação gravíssima.
Até a presente data, a instituição, gerida desde 2018 pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), não recebeu um centavo dos R$ 12 milhões de seu orçamento anual. A Acerp perdeu recentemente um contrato com o Ministério da Educação. “Se o orçamento da Cinemateca não for imediatamente repassado à Acerp, assegurando a manutenção do quadro mínimo de contratados e as condições físicas de conservação, não haverá necessidade de uma perspectiva de fôlego, pois já teremos alcançado a solução final”, afirma a carta, também assinada por Lygia Fagundes Telles e Ismail Xavier, ex-presidentes do Conselho da Cinemateca, Carlos Augusto Calil, ex-diretor da instituição, e o diretor de fotografia e cineasta Lauro Escorel.
“Este texto foi escrito com a finalidade de mostrar que a Cinemateca precisa de dinheiro, não há nenhuma reivindicação maior. Se não há dinheiro para pagar os funcionários, para manter o ar-condicionado, para conservar os negativos, dentro de 15 dias ela encerra as atividades”, argumenta Giorgetti, lembrando que a instituição não é de São Paulo: “Ela é em São Paulo. A Cinemateca é brasileira, então tem a ver com todo mundo.”
DITADURA
As origens da instituição remontam a 1940, quando foi fundado o Primeiro Clube de Cinema de São Paulo por Paulo Emílio Sales Gomes e Décio de Almeida Prado, entre outros. Fechado pela ditadura durante o Estado Novo (1937-1945), em 1946 foi aberto o Segundo Clube de Cinema de São Paulo. Em 1949, por meio de um acordo entre o clube e o recém-criado Museu de Arte Moderna de São Paulo, foi fundada a Filmoteca do MAM-SP. Paulo Emílio passou a dirigir a filmoteca, que, em 1956, tornou-se a Cinemateca Brasil, sociedade civil sem fins lucrativos transformada em fundação em 1961.
A sede própria só foi inaugurada em 1988, em um antigo matadouro na Vila Clementino, na Zona Sul da capital paulista, perto do Parque do Ibirapuera. Na época integrante do corpo do Instituto do Patrimônio Histórico de Artístico Nacional (Iphan), a partir de 2003 a Cinemateca passou a integrar a Secretaria do Audiovisual do (extinto) Ministério da Cultura. Desde 2018, a instituição é gerida pela Acerp. O contrato de gestão tem validade de três anos.
Além das mudanças administrativas, o espaço sofreu quatro incêndios. No mais recente, em 3 de fevereiro de 2016, perderam-se 1.003 rolos de filmes, referentes a 731 títulos. Naquele ano, a instituição enfrentou outro revés. Primeiro ministro da Cultura do governo Temer (2016-2018), Marcelo Calero exonerou, em julho, a cúpula da Cinemateca – 81 demissões na pasta ocorreram por causa de uma reestruturação do ministério. Além disso, em fevereiro deste ano, parte das instalações da Cinemateca foi atingida por uma enchente.
DESMONTE
Para aqueles que já trabalharam na Cinemateca ou utilizaram seu acervo, o que está ocorrendo agora é resultado de um desmonte. “Desde o governo Temer ela vem sendo dilapidada. Em termos operacionais, foi muito desmobilizada”, acrescenta Giorgetti. Funcionária da instituição durante 36 anos até se aposentar, em 2015, a conservadora Fernanda Coelho comenta que a situação de penúria “não nasceu da noite para o dia”.
“Administrativamente, ela foi ficando mais frágil. Quando estava dentro do Iphan, era como o corpo de um museu, encarada como memória. Quando foi para a Secretaria do Audiovisual, se juntou à área de produção, mas ainda tinha uma lógica, pois o resgate da memória faz parte do ciclo de produção do cinema. Quando ficou à mercê da administração direta, o impacto foi maior. Depois acabou o Ministério da Cultura, que virou Secretaria, e hoje a Cinemateca é ligada a outro ministério. Isso tudo significa perda de autonomia de ação, há muitas dificuldades administrativas”, explica Fernanda.
Na opinião da conservadora, o trabalho de memória exige continuidade, “já que um acervo tem que durar 100 anos ou mais”. Ela vê com ceticismo a entrada de Regina Duarte. “E chega essa senhora para dirigir um espaço que está arriscado a não pagar conta de luz. Sem luz, a climatização será desligada e é impossível preservar o acervo sem climatização. Pois uma senhora que diz que o passado tem que ficar pra trás que compreensão tem de arquivo, de memória? Para mim, tudo está indicando uma grande tragédia.”
A cinemateca é responsável pela preservação e difusão da produção audiovisual brasileira de 1897 até os dias atuais. Seu acervo reúne informações de 42 mil títulos (longas, médias e curtas-metragens, cinejornais, filmes publicitários, institucionais ou domésticos e séries).
O desmantelamento da instituição tem dificultado o acesso ao acervo. A produtora cultural mineira Daniela Fernandes, que comanda o Curta Circuito, afirma que há três anos não recorre à Cinemateca Brasileira. Seu projeto foi criado em 2001, em Belo Horizonte, e desde 2015 trabalha exclusivamente com filmografias antigas, em exibições no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, e no interior do estado.
“O último filme me foi cedido (para exibição pública) em 2017. Depois, as portas se fecharam completamente. A equipe foi se reduzindo até chegar ao ponto de não ter ninguém para revisar a saída de um filme, analisar o estado de conservação em que a cópia se encontrava. Isso acabou inviabilizando qualquer tipo de negociação”, comenta Daniela.
O processo vem de muitos anos. Em 2014, a produtora mineira havia conseguido verba para restaurar o filme Rebelião em Vila Rica (1957), dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira. O processo seria realizado pelo Labo Cine, então o maior laboratório de processamento de filmes do país, fechado em 2015. “Na Cinemateca, não permitiram que eu tirasse a cópia. Tive que devolver o dinheiro”, lamenta Daniela Fernandes.
POUCOS FILMES
Ainda que tenha carreira de sucesso como atriz, Regina Duarte é mais ativa no teatro e na televisão. No cinema, ela estreou, em 1968, com Lance maior, do cineasta Sylvio Back. Em 50 anos, fez de filmes experimentais, como O homem do Pau-Brasil (1982), de Joaquim Pedro de Andrade, a comédia dos Trapalhões, como O cangaceiro trapalhão (1983). Seu longa mais recente é As herdeiras (2018), de Marcelo Martinessi.