Festivais na pandemia dão origem ao espectador remoto de cinema

Mostras em Brasília e BH são as primeiras no país a adotar o formato de exibições on-line para manter suas edições 2020

Pedro Galvão 25/04/2020 10:20
Zeta Filmes/Divulgação
O longa-metragem Liberté, premiado no Festival de Cannes, foi liberado on-line, mas com restrições de horário (foto: Zeta Filmes/Divulgação)

Prestigiar um festival em Brasília e conferir a estreia de um ciclo de curtas-metragens em Belo Horizonte, num intervalo de poucas horas e de graça. O que seria um sonho de alguns cinéfilos é realidade durante a pandemia do novo coronavírus, quando mostras e eventos cinematográficos fazem opção pelos recursos on-line para manter suas edições durante a quarentena.

Desde o início desta semana se desenrola a 7ª edição do Brasília International Film Festival (BIFF), com alguns títulos importantes do cinema estrangeiro fazendo sua estreias por aqui. Na sexta-feira (24), a Fundação Clóvis Salgado iniciou a versão digital da mostra Curta no Almoço, que exibe um filme do formato semanalmente. Tudo isso acessível em alguns cliques, num modelo controverso, mas adotado por outros grandes eventos internacionais. A reportagem do Estado de Minas conferiu como funciona.

Iniciado na última terça-feira (21) e com encerramento previsto para este domingo (26), o BIFF oferece ao público programação eclética, dividida entre uma mostra infantil; uma competitiva com oito títulos inéditos no Brasil, entre ficções e documentários; e outra especial, em homenagem ao ator norte-americano Kirk Douglas, que morreu no último dia 5 de fevereiro, aos 103 anos.

Com a impossibilidade de exibição em uma sala com tela grande, em sessões com dia e hora marcados, toda a grade está disponível gratuitamente, até este domingo, na plataforma de vídeos sob demanda Looke. Para assistir, é necessário fazer um cadastro, gratuito, no site, mediante fornecimento de vários dados pessoais, como endereço, CPF e telefone. O Looke tem uma modalidade de assinatura mensal para acesso irrestrito ao catálogo, mas ela não é requisitada para acessar os títulos do festival, que se encontram destacados e separados na página inicial.

OSCAR

Um deles é o longa polonês Corpus Christi, de Jan Komasa, indicado ao Oscar de melhor filme internacional neste ano, categoria vencida pelo sul-coreano Parasita. O BIFF oferece a primeira oportunidade para assisti-lo legalmente no Brasil.

A trama, baseada em história real, aborda a trajetória de um jovem chamado Daniel, que cumpre pena por diversos delitos, mas sonha em virar seminarista e se tornar padre quando sair da cadeia. Logo nas primeiras cenas, ele é dissuadido da ideia pelo padre que celebrava as missas no presídio e julgava ser inaceitável um ex-criminoso no seminário.

Entretanto, ao ganhar a liberdade condicional, ele encontra uma forma de exercer o ofício em um vilarejo do interior. A presença do protagonista, interpretado por Bartosz Bielenia, muda totalmente a rotina e as relações da pequena população local, até então tomada por sentimentos de ódio e revanchismo depois que um acidente automobilístico matou seis jovens locais.

Embora a maior parte da programação esteja disponível para o público assistir a qualquer hora, o filme espanhol Liberté, vencedor do Prêmio Especial do Júri da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes do ano passado, tem período restrito de exibição na plataforma, até as 23h59 deste sábado (25).

Incluído na mostra Grandes Pré-Estreias, ao lado de outros três títulos, o longa do espanhol Albert Serra trata de uma noite de jogos sexuais que reúne libertinos em uma floresta no século 18. Ele “entrou em cartaz” no festival às 19h desta sexta-feira.

A realização virtual inclui outro aspecto recorrente dos festivais: os debates e encontros entre público e profissionais do setor. No site do evento (www.biffestival.com), no qual também há o caminho para acesso aos filmes via Looke, a aba Atividades Formativas disponibiliza o curso “Documentário - Da origem à produção contemporânea”, ministrado pela jornalista e documentarista Flávia Guerra, em quatro aulas de aproximadamente 20 minutos cada uma, gravadas e exibidas em vídeo.

Nessa mesma seção, também é possível assistir ao debate “Mulheres em protagonismo - A batalha feminina por espaço no mercado audiovisual”. Realizado via encontro virtual entre as produtoras Debora Ivanov e as jornalistas Krishna Mahon e Flávia Guerra, com mediação da cineasta Cibele Amaral, o bate-papo de pouco mais de 60 minutos também está disponível na íntegra. Neste domingo (26), a cerimônia de premiação estará disponível a partir das 20h30.

Aurum Films/Divulgação
Indicado ao Oscar de melhor filme internacional, o polonês Corpus Christi estreou no Brasil em sessão remota promovida pelo BIFF (foto: Aurum Films/Divulgação)

HORÁRIO

Se aspectos como a sala escura e a tela grande se perdem, substituídos pelos dispositivos menores nas casas dos espectadores, o horário marcado da sessão é mantido, em alguns casos. A mostra Curta no Almoço, do Cine Humberto Mauro, faz jus ao nome e exibe o filme apenas entre as 12h e as 14h da sexta-feira, na página da Fundação Clóvis Salgado no Facebook.

A abertura da edição 2020 do ciclo foi realizada nesta sexta-feira (24), com Angela, da mineira Marília Nogueira, premiado pelo júri popular no Festcurtas 2019. Com 12 minutos de duração, o filme mostra a protagonista que dá nome à história, interpretada por Teuda Bara, preocupada com a própria saúde, em meio a uma longa lista de exames e tratamentos clínicos.

No entanto, é em seu quintal e no convívio com as alegres vizinhas que as coisas podem melhorar. O elenco conta ainda com Gláucia Vandeveld e oferece cenas suavemente emocionantes aos espectadores. Na primeira meia hora do link do filme no ar, as visualizações via Facebook somavam 123, seis pessoas a menos que o total de lugares disponíveis na Sala Humberto Mauro.

Segundo a administração do cinema, 350 pessoas assistiram ao curta, até o final do horário de exibição. “O Curta no Almoço já existia antes da pandemia, com ótima aceitação do público, na sala do Cine Humberto Mauro. Então, decidimos dar início às nossas atividades on-line, com uma curadoria especial, escolhendo filmes que dialoguem com este momento e tragam reflexões sobre o tempo presente de forma poética. Os curtas costumam ter difícil acesso para o público, por isso estamos buscando potencializar as ferramentas disponíveis para torná-los mais acessíveis. Esperamos que o engajamento aumente nas próximas sessões”, argumenta Bruno Hilário, gerente do Cine Humberto Mauro.

Hilário entende que, com o enorme volume de conteúdos nas grandes plataformas de streaming, o trabalho de curadoria feito pelo cinema pode ser um diferencial para o consumo doméstico de cinema. Na próxima sexta-feira (1º), a mostra exibe o título norte-americano Songs for earth and folk (2013), de Cauleen Smith. No dia 8, será a vez de The railrodder (1965), de Gerald Potterton, estrelado por Buster Keaton, que já foi tema de mostra anterior no Cine Humberto Mauro.

Enquanto alguns grandes festivais, como Cannes e Veneza, negaram enfaticamente a possibilidade de se render a uma realização on-line, outros seguirão o caminho virtual. O norte-americano South By Southwest (SXSW), que foi cancelado em virtude da pandemia, decidiu lançar na próxima segunda-feira (27) a vertente cinematográfica de sua programação 2020, em modelo semelhante ao do BIFF.

No caso do SXSW, o serviço de streaming parceiro que hospedará a programação será o Amazon Prime Video. Serão 39 filmes, entre ficção, documentários, curtas e longas, disponíveis gratuitamente até 6 de maio, exclusivamente nos Estados Unidos. Para assistir, não será necessário pagar assinatura, basta ter um cadastro na Amazon. O número de filmes exibidos, entretanto, é bem menor do que os mais de 100 inicialmente previstos para o evento presencial, que seria realizado em março, em Austin, no Texas, e foi cancelado em meio à rápida disseminação da COVID-19 nos Estados Unidos.

As possibilidades digitais são consideradas também pelo Festival Internacional de Toronto, ainda que ele esteja previsto para setembro. Sem garantias de como estará a situação da pandemia até lá, o diretor artístico Cameron Bailey disse à Variety nesta semana que já “estão considerando a realização de um festival híbrido (dividido entre internet e eventos presenciais)”, uma vez que adiar a realização não é uma opção.

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