Versão em português de 'Parasita' foi dublada por mineiros

Estúdio de BH venceu processo de seleção para fazer o trabalho, que terminou às vésperas do início da quarentena na capital mineira

Pedro Galvão 02/04/2020 07:15
Pandora Filmes/Divulgação
Versão do longa de Bong Joon-ho dublada em Belo Horizonte está disponível em plataformas de filmes sob demanda (foto: Pandora Filmes/Divulgação )
“Quando vocês superarem a barreira das legendas, conhecerão muitos filmes incríveis”, disse o diretor sul-coreano Bong Joon-ho, quando seu Parasita recebeu o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, em janeiro passado. A essa altura, Parasita já havia conquistado a Palma de Ouro em Cannes e caminhava para fazer história no Oscar, levando quatro estatuetas, inclusive a de melhor filme.

Se o idioma pouco familiar aos ouvidos ocidentais e o esforço de ler as letras miúdas ao pé da tela para compreender as cenas ainda se configuram como um obstáculo para a maior difusão do longa de Bong Joon-ho, o trabalho artístico feito por dubladores de Minas Gerais talvez ajude a aproximar uma parcela dos espectadores do filme no Brasil.

Lançada há menos de duas semanas nos serviços nacionais de vídeos sob demanda, a versão brasileira de Parasita foi gravada em Belo Horizonte, no estúdio Scriptus, localizado no Bairro Salgado Filho, com elenco, direção e técnica majoritariamente compostos por profissionais mineiros.

Deixando totalmente de lado “uais” e “sôs” ou qualquer inflexão típica das Gerais, eles mergulharam na história, criando uma versão em português capaz de preservar alguns aspectos sonoros do áudio original, como as interjeições de longas vogais.

“É preciso uma assimilação cerebral sobre o que acontece em cena. As falas em coreano têm muitas vogais, palavras só de vogais. Foi preciso pensar como encaixaríamos tudo isso sem perder naturalidade. Isso começa desde a tradução, mas passa fortemente pela adequação dentro do estúdio, quando descobrimos os lugares das bocas e o sincronismo”, descreve o diretor de dublagem, Marcelo do Vale.

Depois da seleção do estúdio Scriptus para o trabalho, o processo de gravação, pré e pós-produção foi feito em 10 dias. Tudo ficou pronto imediatamente antes de a quarentena começar, no último dia 16 de março.

COMPLEXIDADE 

Pandora Filmes/Divulgação
Título sul-coreano venceu a Palma de Ouro em Cannes e quatro Oscars, incluindo o de melhor filme (foto: Pandora Filmes/Divulgação )
Embora já tenha trabalhado anteriormente com dublagem de outras produções asiáticas, o diretor mineiro destaca a complexidade de Parasita, que ele assistiu ao menos meia dúzia de vezes. “Criamos um acordo entre o original e a versão dublada.

É um filme que tem silêncios importantes, olhares. Procuramos manter tudo isso e colocar um português bem falado, que se torna natural na boca dos atores em cena, de modo que qualquer pessoa no Brasil assimile bem”, afirma Do Vale, que entende a dublagem como algo que torna o cinema “mais democrático.”

“Sobretudo por não ser uma história norte-americana, com as quais estamos todos mais acostumados, mas mesmo assim universal, com pessoas que riem, choram, gritam. A dublagem vem para mais pessoas terem acesso”, diz.

Personagem decisivo na trama, Kim Ki-woo, ou “Kevin”, para quem já assistiu, originalmente interpretado por Choi Woo-shik, ganhou a voz do ator mineiro Rodrigo Mangah. Dublador há sete anos, sempre em estúdios de Belo Horizonte, ele já havia trabalhado em produções de vários idiomas, inclusive da Coreia do Sul.

“Eram filmes de ação, com muita luta, muito ‘ah!’, ‘uh!’, mas Parasita foi totalmente diferente”, conta. O grande desafio foi a própria natureza ambígua de Ki-woo, um jovem calmo, educado, mas extremamente ardiloso ao criar a complexa situação envolvendo sua família, pobre, e uma outra, rica, que torna a história tão especial.

“Dublagem é uma grande responsabilidade, sempre. Neste filme, pela dimensão dele, ainda mais. Além da língua coreana e das técnicas necessárias, era preciso manter essa naturalidade do original. Muitas vezes, é preciso dar uma interpretação a mais, mas, nesse caso, é o inverso. Meu personagem parece ser linear, mas não é. São nuances, tem leveza, mas com uma pitada de maldade.  Então era preciso dar o equilíbrio. Nem suavizar demais, a ponto de torná-lo doce, nem ir para um tom que o deixasse mau ou agressivo”, diz Mangah. O processo para se atingir esse resultado é feito em conjunto com a direção e inclui muitas repetições e revisões do trabalho.

Embora a equipe seja quase toda mineira, o ator reforça que sotaques não fazem parte da rotina de dubladores, o que fica claro em sua voz ao conceder a entrevista. “Somos muito atentos a isso. Quem está há mais tempo já tem esse costume, de ter muito cuidado com a pronúncia correta de todas as letras de cada palavra. O objetivo é tornar universal dentro do português, para qualquer pessoa que assista, sem deixar mecânico ou artificial”, explica, comparando a dublagem a “atuar com uma máscara.”

Nesse sentido, a atriz Paula Amorim, dubladora de Kim Ki-jung, a Jéssica, vivida por Park So-dam, se refere a si mesma como “uma artista da voz”. Com formação teatral no Galpão Cine Horto e no Cefart, o Centro de Formação Artística e Tecnológica do Palácio das Artes, onde atualmente estuda canto erudito, ela entende que “as linguagens se misturam.” No ramo da dublagem há quatro anos, o trabalho em Parasita, entretanto, foi o primeiro que ela fez com um filme de origem asiática.

“O coreano é muito mais difícil do que o inglês, por exemplo. Em um filme norte-americano, a melodia da fala é mais simples, mais fácil de encaixar a boca. O coreano é mais complexo, mas é muito sobre entrar na energia da personagem e compreender que quem está atuando é ela É preciso respeitar essa liberdade e entrar nela”, afirma Paula, que também ressalta a compreensão da personalidade da personagem, “extremamente inteligente, safa e capaz de lidar com várias situações.”

Marcelo do Vale / Arquivo Pessoal
O ator Rodrigo Mangah (ao fundo) e o diretor Marcelo do Vale (D), no estúdio em Belo Horizonte (foto: Marcelo do Vale / Arquivo Pessoal)
MUSIQUINHA 

Até mesmo uma musiquinha mnemônica usada por Jéssica em uma cena para decorar informações sobre a falsa identidade que ela assume diante da família de ricaços foi recriada.

“Foi um processo de memorizar a melodia. Fiquei escutando várias vezes seguidas, com o Marcelo do Vale, e então encaixamos a letra em português, um trabalho minucioso mesmo. Aliás, em geral, não tem muito segredo, é dedicação mesmo, de ouvir, checar, refazer. Observamos cada cena original, o movimento da boca, a respiração, tudo isso”, comenta a atriz.

Diretora do estúdio Scriptus, Rafaela Lôbo observa que “a dublagem é um processo muito artesanal, muito bonito, que dá acessibilidade ao filme”. Segundo ela, “muita gente tem dificuldade em ler legenda na velocidade exigida, além de ela fazer com que o espectador perca um pouco da imagem. Bom ver que é a primeira vez que um estúdio de Minas Gerais é escolhido para um trabalho desse porte”, afirma.

O processo de seleção do estúdio responsável pela versão brasileira foi realizado em Londres, no começo do mês, e avaliou testes de dublagens do trailer do filme, levando em conta as vozes e a interpretação. No estúdio mineiro, 19 pessoas participaram da dublagem, além da equipe técnica. A versão dublada encontra-se nas plataformas Now, Vivo TV, Oi TV e Looke.

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