Quarenta e quatros pés, ou 13 metros. Durante 10 anos, a família Schürmann – os pais, Vilfredo e Heloísa, e os filhos, Pierre, David e Wilhelm – navegou o mundo a bordo do veleiro Guapo. Foi a primeira família brasileira a realizar o feito.
“Somos exatamente o oposto daquele modelo de ‘família margarina’ que apareceu em reportagens do Fantástico, pois temos visões completamente diferentes uns dos outros”, afirma David Schürmann, o filho do meio, hoje com 45 anos.
O isolamento social e a convivência forçada no dia-a-dia, que milhões de brasileiros começaram a fazer por causa da pandemia do coronavírus, foram uma opção e uma constante para os Schürmann.
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Sem modelos prévios, tiveram que se adaptar a um cotidiano em um espaço exíguo, cheio de afazeres e sem nenhum luxo, como televisão, smartphones ou internet. “Tivemos que aprender qual era o espaço de cada um, até que ‘botão poderíamos apertar’, conta David.
Há duas semanas, ele está recolhido em sua casa, em São Paulo, com o filho, a namorada e a mãe. David é o cineasta da família. Além de vários documentários, dirigiu Pequeno segredo (2016), filme que acabou se tornando alvo de polêmica, por ter sido o escolhido pelo Brasil para tentar uma vaga no Oscar, derrotando o celebrado Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.
Pequeno segredo conta a história de Kat, a irmã adotiva de David, que nasceu infectada com o vírus do HIV, adquirido por sua mãe biológica numa transfusão de sangue.
MALVINAS
Em seu apartamento, David recebe notícias diariamente do pai, no atual veleiro dos Schürmann, Kat – de 120 pés, ou seja, 36 metros, a embarcação homenageia a filha caçula do casal, morta em 2006. Aos 72 anos, o capitão Vilfredo está com outras duas pessoas, entre elas o filho Wilhelm, ancorado nas Falklands (Malvinas).
O veleiro estava pronto para retornar ao Brasil, quando a pandemia no novo coronavírus foi anunciada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). “Eles estão parados em um lugar que não tem nenhum ser humano. Quando o mundo caiu, falamos para ficarem mais tempo. Têm mantimentos para pelo menos mais uns dois meses. Não há preocupação de faltar água. Para esse tipo de expedição, ficam preparados para passar meses sem contato humano. Fiz até uma brincadeira de que hoje é o melhor lugar para se estar”, afirma David.
Obviamente, é um ótimo lugar para se estar no caso daqueles que estão acostumados com longas expedições. E os Schürmann fazem do mar e do isolamento seu meio de vida desde 1984, quando a família deixou tudo em Florianópolis – o pai era empresário, a mãe tinha uma escola de inglês – para viver no mar. Adaptações para este modo de vida nada convencional, em que todos vivem juntos em um espaço pequeno, tiveram que ser feitas.
“A primeira coisa que falo é que os pais têm que sair do pedestal e se tornar mais amigos e parceiros. Quando o espaço é pequeno como o de um veleiro, não é só o confinamento o problema. Há momentos extremos, como tempestades, em que você acaba se tornando um tripulante, em vez de ser só o filho”, diz David.
A experiência que ele teve passando infância e adolescência num barco lhe ensinou a escutar o outro, “o que não significa aceitar o ponto de vista, mas respeitar”. Para David, a convivência familiar muito próxima e por um longo espaço de tempo – na expedição que levou 10 anos, os Schürmann chegaram a passar 34 dias no mar, sem nenhum contato com a terra – ensinou a eles não levar as discussões para além do calor do momento. “O segredo, no final, era que ninguém estava certo ou errado. A discussão termina ali, e a página era virada.”
ROTINA
David e seus irmãos viveram por uma década tentando manter uma rotina, mesmo que a vida no mar não permita que um dia seja igual a outro. “No momento em que está todo mundo junto, precisa haver disciplina.”
A rotina dos Schürmann tinha início às 8h, quando, depois do café da manhã, os três garotos estudavam até o meio-dia. “A gente ajudava nas tarefas do barco, não tinha isso de a mãe que fazia a comida. Aprendi a cozinhar aos 11 anos.”
Depois do almoço, os garotos tinham três horas de lazer. “Como na época não havia televisão a bordo, eles se divertiam com jogos de tabuleiro e livros. A gente carregava toneladas de livros no barco. Também escutávamos rádio, pescávamos, batíamos papo. Era olho no olho”, descreve David.
Havia ainda a hora dos exercícios físicos. “No barco, você utiliza a parte superior do corpo, mas pouco as pernas. Então, mesmo achando um saco, tínhamos que fazer por mais ou menos uma hora.” Depois, havia o jantar, banho e o turno noturno da navegação – cada membro da família ficava responsável pelo veleiro durante duas ou três horas a cada noite.
Na opinião de David, com uma rotina o tempo passa mais rápido, quando se está em isolamento. Mas, mesmo vivendo juntos, há o momento de cada um ficar na sua. “Ninguém tem que ficar junto o tempo todo. Todos temos que desacelerar, reaprender. Hoje terceirizamos isto com o entretenimento”, acrescenta ele, que, nos dias de hoje, passa no máximo duas semanas consecutivas em um veleiro.
Os integrantes da família Schürmann fizeram expedições em conjunto, nunca sozinhos. Nas viagens mais recentes, há outros tripulantes. “Tiro o chapéu para o Amir (Klink, mais importante navegador brasileiro, que já passou mais de um ano sozinho na invernagem na Antártica). Ele tem um lado psicológico extremamente forte, é resiliente. Viajar como uma família (como os Schürmann) tem um sentido diferente.”
Ainda que tenha prática com o isolamento social, David, como todos nós, também está sofrendo com os efeitos de parar tudo e ficar em casa para evitar a disseminação do coronavírus no Brasil. Seus dois próximos filmes estão parados.
Um dos longas é uma adaptação do livro Por um fio (2004), de Drauzio Varella, com histórias reais de pacientes e seus familiares frente à morte iminente. O outro, com o título provisório de Aleppo, é uma produção internacional que acompanha dois irmãos fugindo da Síria no início da guerra civil.
Quase finalizado está o documentário U-513 – Em busca do Lobo Solitário, que acompanha a busca dos Schürmann durante nove anos para encontrar o submarino nazista que foi afundado pelos Aliados em águas brasileiras durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Os destroços foram encontrados na costa catarinense, em julho de 2011. O Lobo Solitário é, até hoje, o único submarino alemão encontrado dos 11 que foram afundados na costa do Brasil. Este documentário estava previsto para chegar aos cinemas brasileiros no segundo semestre.
“Não somos uma empresa que tem fundo de caixa. Estamos no mesmo barco que a grande maioria. Já estamos todos em home office, tentando fazer um planejamento lá na frente para sobreviver. Há o grande desafio da economia, mas a vida vem em primeiro lugar”, diz David.
“Não somos uma empresa que tem fundo de caixa. Estamos no mesmo barco que a grande maioria. Já estamos todos em home office, tentando fazer um planejamento lá na frente para sobreviver. Há o grande desafio da economia, mas a vida vem em primeiro lugar”, diz David.