Como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. Toda sanidade é questionável. Será? Não é de hoje que o cinema se dedica a desenvolver tramas psicológicas, com personagens obsessivos, angustiados, em sofrimento mental, com vidas suspensas, realidade afetada, vivendo o dilema da não aceitação. Em geral, num filme assim, alguém do outro lado da história corre perigo.
Nesta semana, o circuito de salas de Belo Horizonte exibe ao menos dois longas que colocam o espectador em a dúvida se os dramas experimentados por seus protagonistas têm ou não lastro na realidade. O homem invisível, que estreia nesta quinta-feira (27), traz Elisabeth Moss (The handmaid's tale) como Cecilia Kass, uma mulher envolvida com um parceiro abusivo e certa de que continua sendo perseguida por ele, mesmo depois de sua morte. O roteiro de Leigh Whannell é adaptado do romance homônimo de H. G. Wells. Lançado em 1897, o livro relata o experimento de um cientista ótico que consegue se fazer invisível.
No longa sérvio Cicatrizes, de Miroslav Terzic, que segue em cartaz, Ana (Snezana Bogdanovic) tenta obsessivamente provar que seu filho, dado como morto ao nascer, na verdade foi sequestrado. Ao insistir nessa versão, ela entra em conflito com praticamente todas as pessoas e entidades – polícia, hospital – com quem precisa interagir.
Narrativas em que há um herói (ou anti-herói) obcecado com algo ou alguém, com sentimentos compulsivos e sendo perseguido (ou perseguindo) costumam ter alto potencial de envolver o espectador, seja por provocar identificação, estranhamento ou mesmo pelo peso da história. Para o professor de teoria e história do cinema na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luiz Nazario, “a paranoia é tema interessante, porque há sempre a dúvida: é conspiração ou não? É loucura ou não? A ambiguidade da situação atrai o espectador”.
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Filme sobre a rotina dos entregadores de aplicativos estreia no BrasilAplicativo gratuito move a trama de terror de 'A hora da sua morte'Também crítico de cinema, Nazario ressalta que a adesão a essas tramas se deve ao fato de que “o problema da loucura é ver uma realidade recortada pela doença. O que enriquece o filme e deixa a história mais interessante. A personagem não é 100% normal, mas, ao mesmo tempo, ocorrem coisas anormais em torno dela. Pano para a complexidade”.
Ele vê uma conexão entre essa abordagem e a atual sociedade tecnológica invadida pelo fenômeno das fake news: “O mundo é fluido. As pessoas acreditam no mundo da pós-verdade, verdades que não são reais. Teoria da conspiração, terraplanismo... Para (o ensaísta) Olavo de Carvalho, fumar não faz mal. Temos campanhas contra a vacina. Vivemos em uma realidade invertida, com a criação de bolhas ideológicas com uma visão de mundo fechada onde a realidade não penetra mais”. Nesse contexto, tramas sobre realidades distorcidas ganham ressonância.
O fato de que tanto O homem invisível quanto Cicatrizes tenham mulheres como protagonistas não parece aleatório para Nazario. “Ainda que tenhamos homens protagonizando histórias assim, mulheres e crianças aparecem com mais frequência porque são mais frágeis e criam maior identificação. Com o homem, há sempre uma certa desconfiança”, diz.
Ele cita outro exemplo: em Plano de voo (2005), de Robert Schwentke, Jodie Foster vive a engenheira Kyle Pratt, que está a caminho de casa, num voo da Alemanha para Nova York, onde seu marido acaba de morrer. Kyle cai no sono e, quando acorda, não encontra sua filha. A partir daí, todos na aeronave sustentam que a criança nunca embarcou, questionando a sanidade da engenheira.
O professor e crítico cita também um exemplo de obsessão coletiva registrado na série documental Wild wild country (2018), dos irmãos Chapman e Maclain Way, que reconstitui a história do guru Osho e seu projeto de construir uma cidade utópica no deserto do Oregon. “Uma série fantástica, feita com reportagens da época, mostrando a criação de uma cidade com leis de uma realidade própria, com as pessoas criando uma realidade à parte, numa sociedade totalitária”. A série está disponível na Netflix.
A investigação da psique humana é um tema que instiga especialistas e curiosos e ao qual o cinema não se furta. “O cinema e a psicanálise nasceram praticamente juntos, no final do século 19. Assim, muitos teóricos do cinema usaram a referência da psicanálise como a teoria da interpretação dos sonhos”, afirma Ataídes Braga, professor, cineasta, historiador e pesquisador.
A investigação da psique humana é um tema que instiga especialistas e curiosos e ao qual o cinema não se furta. “O cinema e a psicanálise nasceram praticamente juntos, no final do século 19. Assim, muitos teóricos do cinema usaram a referência da psicanálise como a teoria da interpretação dos sonhos”, afirma Ataídes Braga, professor, cineasta, historiador e pesquisador.
“Nas minhas pesquisas, Freud (1856-1939) não gostava tanto do cinema, da apresentação do inconsciente na representação fílmica. Um filme surrealista dos anos 1920, como Um cão andaluz (1929), fruto da parceria de Luis Buñuel e Salvador Dalí, vanguardista, era para ele pura alucinação. Ele não entendia. Mas era baseado nos conceitos da psicanálise freudiana.”
O professor cita outros mestres da psicanálise que foram parar na telona como personagens ou por meio da aplicação de suas teorias a personagens emblemáticas. A Séverine (Catherine Deneuve) de A bela da tarde (Luis Buñuel, 1967), por exemplo, está intimamente ligada ao pensamento de Jacques Lacan (1901-1981). “Lacan dizia que toda paciente dele com algum traço de sofrimento provocado por abuso deveria, antes de mais nada, assistir a esse filme. Fazia parte do tratamento.”
Braga menciona ainda Um método perigoso (2011), de David Cronenberg, “que mostra como a relação entre Carl Jung (Michael Fassbender) e Sigmund Freud (Viggo Mortensen) faz nascer a psicanálise. E aborda a intensa e polêmica relação da dupla com a paciente Sabina Spielrein (Keira Knightley). É o uso do cinema para discutir a realidade”.
Braga menciona ainda Um método perigoso (2011), de David Cronenberg, “que mostra como a relação entre Carl Jung (Michael Fassbender) e Sigmund Freud (Viggo Mortensen) faz nascer a psicanálise. E aborda a intensa e polêmica relação da dupla com a paciente Sabina Spielrein (Keira Knightley). É o uso do cinema para discutir a realidade”.
Freud além da alma (John Huston, 1962), com roteiro (não creditado) de Sartre, e ainda o recentíssimo Coringa (2019), de Todd Phillips, que deu a Joaquin Phoenix o Oscar de melhor ator, são dois outros exemplos apontados por Braga.
“Existe esta linha do cinema onírico, experimental. O que seria minha primeira reflexão sobre o processo de criação de personagens obsessivos, paranoicos e compulsivos. Filmes que abraçam questões psicanalíticas e que criam uma realidade à parte. Tudo isso é sintoma de nossa realidade, não de agora, mas de muitos anos. É possível falar ainda em Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019), em que as pessoas ou uma sociedade estranha e recortada passa a acreditar em um indivíduo que beira a anomalia social, apatia.”
Na opinião do professor e crítico, “os filmes têm, sim, o papel de questionar a realidade para projetar outra imagem, ainda que seja uma felicidade clandestina, exibindo a realidade com outro olhar. Necessitamos classificar este mundo com lanternas, urgentemente, começar do marco zero. Por isso precisamos de um cinema que choque, que cause mal-estar no senso comum, que retrate a psicopatia, a violência do assédio, surtos, enfim, fenômenos sociais que são frutos das condições da atual sociedade e que têm de ser combatidos”.
Para a psicóloga e psicoterapeuta familiar sistêmica Cláudia Prates, atualmente, constata-se o exagero da individualidade, “o baixo investimento na conquista, na construção de relações próximas, profundas, verdadeiras e, consequentemente, mais trabalhosas. O ajuste com a realidade comum (compartilhada) exige atenção, presença e movimento, já que a mesma não se mantém estática e controlável”.
A psicoterapeuta afirma que “filmes baseados em traumas, em vivências sofridas com 'soluções' descabidas, despertam o interesse do público por fornecer emoções ausentes no cotidiano e abrir chance de realizações virtuais. Mulheres desamadas, frustradas, doídas se transformam em fóbicas, obsessivas, dotadas do poder que lhes falta em suas vidas. São guiadas por uma realidade particular, distorcida e desejada (não realizada). A aceitação do real nos compromete com atitudes compatíveis com ele e que, muitas vezes, não combinam com o desejo pessoal. A busca 'enlouquecida' pela satisfação desconhece limites e ignora consequências”.