A participação brasileira no Oscar 2020 é completamente fora do comum. Em primeiro lugar, pela categoria na qual o país tem um representante – a de documentário, e não a de melhor filme internacional (como a Academia de Hollywood passou a denominar a disputa entre os filmes estrangeiros). Além disso, a indicação de Democracia em vertigem, da mineira Petra Costa, foi recebida no Brasil com uma reação extremada – por parte de apoiadores incondicionais e de detratores virulentos.
saiba mais
'Parasita' e '1917' travam duelo pelo Oscar de melhor filme neste domingo
Médica de 'The cave' espera que Oscar chame a atenção para a guerra
Indústria americana leva a melhor sobre Democracia em vertigem no Oscar
Petra Costa escolhe vestido vermelho para a cerimônia do Oscar
Confira galeria com os destaques do tapete vermelho do Oscar
Embora seja um filme a um só tempo sobre o Brasil recente e a própria diretora, Democracia em vertigem é apresentado aos votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood como exemplo de uma tendência global – a chegada ao poder de uma direita ultraconservadora e ultranacionalista – que tem colocado a democracia (ao menos como ela é conhecida) em xeque.
Na véspera de seu lançamento pela Netflix, em junho passado, o longa recebeu uma crítica assinada por A. O Scott no diário The New York Times, na qual ele afirma que “o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é um admirador da antiga ditadura e faz parte de uma tendência global ao populismo autoritário e antiliberal, que atualmente floresce nas Filipinas, na Hungria e em muitos outros países”.
O jornal nova-iorquino ainda incluiu Democracia em vertigem em sua lista dos oito melhores filmes do ano, ao lado de outros futuros postulantes ao Oscar, como Parasita, Dor e glória, Era uma vez em… Hollywood, O irlandês e o concorrente entre os documentários Honeyland. E não foi o único órgão de mídia internacional a apontar o filme de Petra Costa como exemplo de uma realidade mundial.
Advertência
Para David Ehrlich, da IndieWire, “o deslizamento brasileiro em direção ao fascismo se torna uma história de advertência. Parece uma prévia do que está chegando aos Estados Unidos”. Em sua crítica, também publicada em junho de 2019, ele questiona: “Até que ponto uma história sobre uma democracia em queda se torna uma história sobre todas as democracias? Talvez não haja como saber, até já ser tarde demais”.
Quando o filme conquistou uma vaga na briga pela estatueta, em dezembro passado, o crítico e professor carioca Pedro Butcher afirmou ao Estado de Minas: “É um assunto polêmico no Brasil, mas que deu ao filme uma boa comunicação com o público de fora, que pôde entender melhor o que se passa aqui como uma situação comum internacionalmente. Bem ou mal, ela (Petra Costa) mostra paralelos existentes com a eleição de Trump nos EUA e a ascensão de uma nova direita, próxima de uma extrema direita, em vários pontos do mundo. Podem criticar o filme, mas essa conexão é preciso reconhecer”.
A própria diretora tem ressaltado esse aspecto na corrida pelo Oscar. Entre as várias postagens recentes no Twitter, muitas delas em inglês, ela destaca no topo da página um vídeo em que o diretor alemão Wim Wenders (presidente da Academia de Cinema Europeu), o ator norte-americano Tim Robbins e a cineata neozelandesa Jane Campion (uma das únicas cinco mulheres já indicadas ao Oscar de melhor direção e única a vencer a Palma de Ouro, com O piano) associam Democracia em vertigem com o contexto global.
Um depoimento semelhante da jornalista e escritora espanhola Pilar Del Río, presidente da Fundação José Saramago, também está entre as muitas publicações. Em outra, Petra Costa compartilhou trecho de entrevista do cientista político Steven Levitsky. “Tive a imensa honra de conhecer Steven Levitsky no ano passado. Seu livro Como as democracias morrem serviu como guia na jornada de Democracia em vertigem. Neste vídeo, ele compartilha seu ponto de vista sobre o que está por trás da ascensão de demagogos e populistas em todo o mundo #Oscars2020”, comentou, em inglês, acrescentando: “EUA, Reino Unido, Brasil, Hungria, Turquia e tantos outros. Haveria um fio subjacente entre o que está acontecendo com as democracias em diferentes partes do mundo?”.
A cineasta belo-horizontina de 36 anos assinou um artigo no New York Times e deu entrevistas para publicações internacionais recentemente, falando sobre o cenário político global e fazendo críticas a Jair Bolsonaro. Diante da repercussão da indicação do filme e das ideias difundidas por Petra Costa, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República a chamou de “militante anti-Brasil”. Membros do governo brasileiro, incluindo o presidente, já haviam criticado a indicação de Democracia em vertigem ao Oscar, no momento em que a lista dos finalistas foi anunciada, numa aberta torcida contrária à vitória do país no principal prêmio do cinema mundial.
Embora a alta voltagem política que cerca Democracia em vertigem possa beneficiar o filme aos olhos da comunidade de Hollywood, que vive sua própria guerra particular contra o presidente Donald Trump, vencer o Oscar de documentário não será tarefa fácil para o concorrente brasileiro.
Numa categoria tradicionalmente disputada, os concorrentes de 2020 têm tantos predicados que nenhum deles parece estar fora do páreo, embora a mídia americana aponte o documentário produzido pelo casal Michelle e Barack Obama para a Netflix (Indústria americana) como o favorito.
Lutando pelos votos
Confira quais são os concorrentes de Democracia em vertigem
For Sama
A Sama do título é um bebê – a primeira filha da cineasta Waad Al-Kateab, que dirige o filme com Edward Watts. Waad é uma jornalista síria, que, ao longo de cinco anos da guerra civil em seu país, vivendo em Aleppo, uma das cidades mais atingidas pelos combates entre os rebeldes e as forças do ditador Bashar Al-Assad, se apaixonou, se casou e teve a menina. Além da trajetória pessoal da diretora, o filme abre uma janela para a situação das mulheres na guerra. Numa de suas comoventes declarações durante a campanha pelo Oscar, Waad Al-Kateab afirmou que fez o filme como um testamento para a filha, já que tinha certeza de que morreria na guerra.
Honeyland
Produção da Macedônia do Norte, é o primeiro filme de não ficção a competir nas categorias de documentário e filme internacional ao mesmo tempo. O projeto inicial dos documentaristas Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov era fazer um registro da biodiversidade e sustentabilidade para a Sociedade Ecológica da Macedônia. Quando eles encontraram a apicultora Hatidze Muratova, o projeto mudou. Documentar a vida dessa mulher que cuida da mãe muito doente, tem um pacto de sustentabilidade com as abelhas e precisa aprender a conviver com vizinhos (nômades) que chegam com uma mentalidade diferente da dela passou a ser o cerne de Honeyland, que fechou seu foco numa pequena aldeia para enviar uma mensagem transnacional sobre o homem e sua relação com o planeta.
Indústria americana
Primeiro resultado da parceria estabelecida entre o casal Obama e a Netflix, o filme centra seu foco na empresa chinesa Fuyao, uma das maiores produtoras de vidros automotivos do mundo. Mais especificamente, na filial inaugurada nos Estados Unidos em 2016, no espaço onde antes havia uma fábrica da General Motors, em Ohio. A convivência entre funcionários chineses e norte-americanos é o pano de fundo para um embate maior – entre duas economias, sociedades e culturas, do ponto de vista dos menos favorecidos. A direção é de Julia Reichert e Steven Bognar – ela em sua quarta indicação ao Oscar; ele, na segunda.
The cave
Diretor de Os últimos homens em Aleppo, indicado ao Oscar em 2018, Feras Fayyad, que foi impedido de comparecer à cerimônia pelo governo de Donald Trump, apresenta desta vez o retrato de um hospital subterrâneo em uma caverna (Cave, em inglês) no qual a equipe médica, sobretudo uma pediatra que surge como a protagonista da história, tenta salvar a vida de civis atingidos pela Guerra da Síria. Com muitas crianças entre as vítimas, a situação parece muitas vezes insuportável para a principal personagem de The cave – e para o espectador.