Menina dos olhos da Mostra de Cinema de Tiradentes, a seção competitiva Aurora reúne nesta 23ª edição do festival oito títulos de cineastas de cinco estados. No próximo sábado (1º/2), será divulgado o vencedor do Troféu Barroco. Dois longas mineiros estão na disputa e, para a diretora de um deles, um eventual prêmio seria mais do que especial. Clarissa Ramalho, que compete com Natureza morta, é de São João del-Rei e frequenta a Mostra de Tiradentes desde a primeira edição, segundo conta. “Eu nem trabalhava com cinema ainda, mas fui participar de uma oficina de teatro. Então passei a frequentar praticamente todos os anos. É sempre uma experiência muito enriquecedora e interessante.”
Natureza morta é uma livre adaptação do romance A carne (1888), do escritor mineiro Júlio Ribeiro. A narrativa se passa no século 19 e conta a história de Lenita, jovem de formação culta, criada pelo pai e que julga impossível encontrar um homem com estatura intelectual equivalente à sua. O filme mostra a busca da personagem por uma relação saudável com sua sensualidade e o desejo, numa época de intensa repressão à mulher. Rodada numa fazenda histórica nos arredores de Cataguases, na Zona da Mata, a produção conta no elenco com Mariana Fausto, Rômulo Braga, Paulo Azevedo, Helena Ignez, Barbara Vida, Cátia Costa, Rose Abdallah e Octávio III.
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O longa completa a trilogia iniciada com Djalioh (2011) e Paixão e virtude (2014), dirigidos por Ricardo Miranda (1950-2014), com a colaboração de Clarissa. Os dois primeiros títulos se baseiam na obra do escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880). Quando estavam iniciando o processo do terceiro filme, Ricardo faleceu. Levar adiante o projeto passou a ser não apenas uma missão para Clarissa, mas também uma maneira de homenagear o amigo. “A gente já tinha o argumento, tanto que o roteiro é assinado por nós dois. Nem cogitei abandonar (o projeto), sempre confiei em que ia dar certo, até porque deixar uma arte inacabada é muito triste”, afirma.
Clarissa levou anos para concluir a produção, mas não esmoreceu. A cada ano ela se inscrevia em editais, até que, no ano passado, finalmente, conseguiu ser aprovada. “Mesmo que levasse 20 anos, eu não desistiria. Mas só ia fazer (o filme) no dia em que eu tivesse como bancá-lo. Mas veio no momento certo e estamos aí, estreando em Tiradentes, e já sendo selecionados para a Mostra Autora”, comemora.
Os três longas se passam no século 19 e também têm em comum um processo inusual na produção cinematográfica contemporânea, o de teatralização do cinema. “Não é algo feito nos moldes tradicionais. Temos narradores e tanto eles quanto os personagens contam a história, mesmo que não estejam narrando exatamente aquela cena que está sendo apresentada”, explica a diretora.
Natureza morta será exibido na próxima sexta (31), às 22h, no Cine Tenda. O filme conta com a participação de dois bailarinos do Grupo Corpo – Ágatha Faro e Elias Bouza – executando uma coreografia de Rodrigo Pederneiras criada exclusivamente para a produção. “É uma dança que simboliza, de certa forma, o encontro sexual do casal de protagonistas do filme”, revela Clarissa. Ela diz estar com um frio na barriga por disputar a Mostra Autora, mas sabe que contará com uma animada torcida – seus familiares que moram na vizinha São João irão de caravana para o festival. “Ser selecionada gera um impacto e toda uma expectativa. E tem ainda essa questão da responsabilidade, de continuar esse processo que já tinha começado e levando em conta que tenho uma visão completamente diferente da do Ricardo. Mas estou muito feliz e realizada.”
SEQUIZÁGUA
O outro filme mineiro na Mostra Aurora é Sequizágua, de Maurício Rezende, cuja sessão no festival estava prevista para a noite de ontem (27). Com roteiro de Affonso Uchôa, o longa trata da vida de pessoas que moram num assentamento rural do Norte de Minas. “Há questões de ordem social, política e ambiental que o permeiam, mas tentamos nos ater a questões humanas fundamentais. Há algumas linhas narrativas que se cruzam, que podemos resumir. O sonho da conquista da terra parece ter sido realizado pelos assentados, mas outros desafios se apresentam”, descreve Maurício.
Para ele, o longa pode ser definido como uma ficção, pela forma como algumas cenas foram propostas e trabalhadas, mas também flerta com o documentário “Há questões de representação e dramaturgia intrínsecas à forma de filmar. Um roteiro, a proposição de situações a serem representadas pelos moradores do assentamento, uma certa organização do espaço e de personagens em relação à câmera, uma certa organização estética, visual e sonora que talvez nos permitam defini-lo como ficção”, explica.
Já o caráter documental se faz presente, por exemplo, pela ausência de um controle total sobre o desenvolvimento da mise en scène, de um texto fechado e linhas exatas de antemão para guiar a representação. “Os 'não atores' representavam a si mesmos e algumas situações realmente vividas por eles anteriormente. Mais do que impor como deveriam se portar diante da câmera, a proposta era, nesses casos, colocada em termos gerais e desenvolvida durante o próprio processo de filmagem. Há ainda diversas situações em que a equipe técnica se portava como num documentário observacional. É claro que a presença da câmera modifica e chega mesmo a determinar os eventos filmados, mas, nesses casos, estávamos mais interessados em segui-los e observá-los do que em modificá-los com propostas extrínsecas”, afirma.
Sequizágua é um neologismo que o diretor e a equipe escutaram em conversas na região, empregado para descrever algo que ocorre durante todo o ano, comum tanto na estação das águas quanto na seca. Ainda segundo o diretor, um dos personagens do filme usou esse termo explicando que determinadas plantas davam frutos nas águas; outras, na seca, e outras rendiam frutos sequizágua, ou seja, o ano todo. “O termo passou a ter para nós um certo sentido de coisas perenes, ou que se repetem, coisas que continuam acontecendo, por mais que as condições exteriores mudem. A situação dos assentados, por exemplo, evoluiu de uma situação de luta pela terra para outra de poderem legalmente usufruir da terra. Mas as dificuldades da lida com a terra e da lida com a burocracia estatal ainda são as mesmas. A infraestrutura mudou, mas a macroestrutura ainda é a mesma, com todas as suas contradições e implicações sociais”, diz Maurício Rezende, que celebra a seleção do filme para a Mostra Aurora.
“A Mostra realiza um trabalho muito importante de apresentação de filmes estreantes para o público e a crítica. Essas produções trazem certo frescor ao ambiente cinematográfico, oxigenam as discussões sobre formas de se fazer e pensar cinema e possibilitam uma visão geral do que é feito hoje. Fico feliz por Sequizágua poder ocupar este espaço e desempenhar este papel, por todo o processo e por toda a energia investida por tanta gente em sua realização”, diz.
Filme de Affonso Uchôa tem exibição e debate
Mesmo não disputando nenhuma categoria, um dos filmes mais aguardados da Mostra de Tiradentes é Sete anos em maio, de Affonso Uchôa (Arábia e A vizinhança do tigre), que será apresentado nesta terça (28), às 15h30, no Cine Teatro Sesi Após a sessão, haverá debate com a presença do diretor.
Como tem sido comum na carreira desse cineasta de Contagem, Sete anos em maio transita entre ficção e realidade, ao trazer para a tela a história de Rafael dos Santos Rocha, vizinho de Uchôa, e que sofreu uma arbitrariedade policial no passado. Em uma noite de maio de 2007, ele chegava em casa, depois de um dia de trabalho. Quando abriu o portão, foi abordado por desconhecidos. Foi confundido com traficantes e acabou sendo torturado.
“O filme, de alguma maneira, trabalha a memória do acontecimento dessa noite na vida do Rafael, que interpreta a si mesmo. O próprio título traz essa temporalidade. São muitos anos que podem caber em um mês. Como um trauma social pode provocar isso”, afirma o diretor. Apesar de ter passado por essa situação, Rafael é um sujeito otimista e não se esquivou de revelar sua história na telona. “Ele é um cara bem positivo, mas tem consciência do que passou. Desde que eu soube o que houve com ele, quis filmar essa história. E ele se mostrou solícito e, inclusive, tem uma participação ativa no roteiro”, conta o diretor.
A produção tem a duração de média-metragem. Affonso Uchôa diz que foi durante a montagem que decidiu que o filme teria apenas 42 minutos. Sete anos em maio tem tido uma trajetória de sucesso em festivais no Brasil e no exterior. Levou o prêmio de melhor filme na seção Novos Rumos no Festival do Rio de 2019. “O curioso é que, por ele estar no meio do caminho, digamos assim, tem sido exibido tanto em sessões de curtas como de longas. Em março, vamos fazer um lançamento inédito pela Embaúba Filmes. Numa mesma sessão, vão ser exibidos Sete anos em maio e Vaga carne, com direção da Grace Passô e Ricardo Alves Jr. ”, avisa.