Descartado da disputa pelo Oscar de melhor filme internacional desde o anúncio dos semifinalistas – que não incluiu A vida invisível, de Karim Aïnouz, o representante apresentado pelo país –, o Brasil entrou no páreo por uma estatueta na manhã de segunda-feira passada (13), quando Democracia em vertigem, da diretora mineira Petra Costa, surgiu entre os cinco indicados a melhor documentário.
O que se viu nos dias seguintes à indicação foi uma reação dividida entre os que celebraram a notícia e os que a deploraram. Os partidários de Democracia em vertigem atribuem ao filme o mérito de apresentar a “verdade”, a “história” e a “memória”; seus detratores classificam-no como uma peça de “ficção”.
A ideia inicial de Petra Costa era fazer um documentário sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff, ocorrido em 2016. O projeto se alongou e o roteiro se expandiu, remontando à fundação do PT, à criação de Brasília, ao período da ditadura militar e à relação mantida com o poder pelas grandes empreiteiras, como a Andrade Gutierrez, da família de Petra Costa.
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Disponível na Netflix, o longa tem cenas narradas em primeira pessoa pela diretora, que oferece uma visão pessoal e reflexiva dos fatos filmados. Ela não esconde, por exemplo, ter votado em Lula na eleição de 2002, ser filha de militantes de esquerda e neta de membros da elite econômica. A proximidade com figuras políticas ligadas à esquerda, como Dilma Rousseff, é maior nos depoimentos dados do que com aquelas da direita, como Aécio Neves (PSDB), que lhe nega um pedido de entrevista.
VISÃO DE MUNDO
O professor e crítico carioca Pedro Butcher considera a imparcialidade na produção de documentários “um mito”. Ele afirma que “há sempre uma visão de mundo, e é possível buscar estratégias para diminuir essa parcialidade, mas funciona melhor quando se assume, dentro de um objetivo racional”. Na opinião de Butcher, Democracia em vertigem aborda “um assunto polêmico no Brasil, mas que deu ao filme boa comunicação com o público de fora, que pôde entender melhor o que se passa aqui como uma situação comum internacionalmente. Bem ou mal, ela mostra paralelos existentes com a eleição de Trump nos Estados Unidos e a ascensão de uma nova direita, próxima de uma extrema direita, em vários pontos do mundo. Podem criticar o filme, mas essa conexão é preciso reconhecer.”.
A ensaísta, pesquisadora e professora de cinema da UNA Carla Maia também diz que “um documentário nunca é neutro, nenhuma narrativa é. Sempre haverá um ponto de vista. Ao mesmo tempo, documentário, o nome já diz, tem documento, tem uma verdade e documentação dos fatos, que opera de dentro da narrativa. Apesar do tom ensaístico, esse filme faz o trabalho de pesquisar e apresentar imagens, depoimentos e dados concretos, que foram checados e não podem ser considerados falsos, a não ser por alguém que não queira lidar com os fatos”.
No aspecto da verdade factual, Democracia em vertigem também levantou polêmica, em razão da decisão de Petra Costa de adulterar uma fotografia em que aparecem os cadáveres de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, militantes do PCB (Partido Comunista do Brasil) assassinados pela ditadura militar. A imagem original tem armas ao lado das vítimas. A diretora as retirou da cena.
“Há uma razão para isso. Como afirmei no documentário, Pedro era o mentor político da minha mãe, e foi amplamente reconhecido que a polícia plantou armas ao redor dos corpos dos ativistas assassinados, como uma desculpa para seus assassinatos brutais. Há um debate significativo sobre a veracidade das armas nesta cena, com muitos comentários. E até a própria Comissão da Verdade trouxe evidências para as alegações de que a polícia plantou as armas após a morte de Pedro, e por isso optei por remover esse elemento e homenagear a Pedro com uma imagem mais próxima à provável ‘verdade”, afirmou a diretora à revista Piauí.
PRESENÇA
Carla Maia pondera que há um estilo próprio da cineasta, que deve ser levado em conta. “A presença dela no filme é forte. Isso é um traço recorrente no seu trabalho, inclusive. Existem cenas, como a dela comemorando a eleição da Dilma, que deixam claro o seu posicionamento na história. Não há problema em marcar posição, mas isso pode dificultar a recepção por quem não está do mesmo lado. O campo da política deve ser aberto a dissensos, deve estimular a discussão de ideias, e o risco envolvido na escolha de contar a história dessa maneira, centrada em quem emite a mensagem, é diminuir a possibilidade de engajamento daqueles que não concordam, a princípio, com o posicionamento exposto.”
Amir Labaki, crítico de cinema e fundador do Festival É Tudo Verdade, dedicado à produção documental, observa que “documentário é arte, logo expressão pessoal e subjetiva. Imparcialidade e neutralidade devem ser perseguidas pelo jornalismo”. Para ele, “excelência e originalidade influenciam muito mais na relevância de um documentário do que um pretenso termômetro de parcialidade”. Labaki aponta o bom momento da produção documental brasileira, ressaltado pela indicação ao Oscar. “O documentário brasileiro despertou para o calor da hora, começando a romper a tradição de olhar apenas para o passado. A grande importância é, de um lado, enriquecer por meio do cinema a discussão sobre o momento presente e, de outro, captar material bruto menos imediatista que auxiliará criações e debates futuros”, afirma.
Tema inspirou outros filmes
Além de Democracia em vertigem, outros documentários exploram o contexto recente da política nacional. Um deles é O processo, de Maria Augusta Ramos, focado nos procedimentos do impeachment de Dilma Rousseff. O processo foi premiado como o melhor longa-metragem no Festival Visions du Réel (Visões do Real), na Suíça, e também no IndieLisboa, em Portugal, além de ter sido um dos preferidos do público no Festival de Berlim (Alemanha). Excelentíssimos, de Douglas Duarte, aborda a atividade parlamentar no Brasil nesses tempos. Em comum, eles têm um olhar mais à esquerda no espectro político.
Sobre a ausência de produções documentais relevantes sobre o tema que ofereçam um contraponto, Amir Labaki, diretor do Festival É Tudo Verdade, afirma: “A virtual inexistência de uma produção documental de viés mais conservador não se restringe ao Brasil. Para ficarmos num exemplo, nos Estados Unidos há apenas um nome mais conhecido, Dinesh d’Souza, diretor de filmes como 2016: Obama’s America e Hillary’s America, de algum sucesso de público. É salutar para a nossa democracia constatar uma mobilização ainda incipiente para o desenvolvimento no país de uma produção documental à direita”.