Na França, os policiais de ronda andam em trio, não em duplas, como no Brasil. Isso explica a conformação no carro de Os miseráveis, o longa francês do maliano Ladj Ly, que estreou nesta semana no Brasil. Desde o Festival de Cannes do ano passado, em que dividiu o prêmio do júri com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Os miseráveis tem sido um dos expoentes da tendência que se pode definir como “revolta dos excluídos”.
Foi indicado ao Globo de Ouro e concorre ao Oscar de melhor filme internacional. Não vai ganhar, porque está trombando em todas essas disputas com Parasita, do sul-coreano Bong Joon-ho, que disputa seis categorias do Oscar, incluindo a de melhor filme. Dois atores do filme, Alexis Manenti e Almamy Manouté, estiveram no Festival do Rio, em dezembro passado. Manenti é corroteirista do longa, com o diretor.
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Na origem de Os miseráveis está um curta escrito por Manenti. Entre os dois filmes, há uma diferença e tanto. Ambos mostram o funcionamento da força policial pelo olhar de um novato na vizinhança. No curta, o policial que está chegando comete a infração que pode levar o mundo – aquele mundo – à explosão. No longa, é testemunha, e a questão é como reagirá.
Manouté é negro, muçulmano. Faz o dono da mercearia que serve de palco para alguns confrontos. Num filme em que ninguém tem razão – os policiais certamente não –, seu personagem tem grande força e dignidade. “Foi um presente de Ladj. Ele próprio é negro e muçulmano, natural do Mali. Conhece o sentimento de não pertencimento que muitos de nós, senão todos, conhecemos na França”, diz Manouté. Dois policiais brancos, o novato e o veterano, e um negro.
Manouté é negro, muçulmano. Faz o dono da mercearia que serve de palco para alguns confrontos. Num filme em que ninguém tem razão – os policiais certamente não –, seu personagem tem grande força e dignidade. “Foi um presente de Ladj. Ele próprio é negro e muçulmano, natural do Mali. Conhece o sentimento de não pertencimento que muitos de nós, senão todos, conhecemos na França”, diz Manouté. Dois policiais brancos, o novato e o veterano, e um negro.
A conformação racial dentro do carro funciona como um microcosmo, e todo o filme tem essa dimensão. Do particular para o universal, e vice-versa. “A pobreza não tem cor nem nacionalidade, o abuso policial é uma realidade cotidiana nas sociedades baseadas na desigualdade social. Na França, tem havido muitas críticas à conivência das autoridades com a repressão policial, embora setores mais à direita defendam os excessos em nome da segurança. Pelo que sei do Brasil, aqui é ainda pior”, diz Manenti.
São várias histórias cruzadas, incluindo as dos policiais e as dos moradores de Montfermeuil, na periferia de Paris. “Só para lembrar, é em Montfermeuil que Victor Hugo situa a ação de seu romance clássico, Os miseráveis, que já aborda a desigualdade e a formação da identidade francesa. Victor Hugo não foi apenas um grande nome da literatura, foi um visionário que de alguma forma intuiu o que ocorreria no país. A França sempre teve dificuldade de conviver com seu passado colonial, e hoje a integração dos descendentes de colonizados segue sendo um problema grave.”
EXPLOSIVO
Um dos episódios, e certamente o mais explosivo do filme, diz respeito ao sequestro de um filhote de leão. A garotada (e um garoto, em especial) se apossam do leãozinho. O dono do circo e seus seguranças reagem de forma brutal, ameaçam iniciar uma guerra. A norma em Os miseráveis é o confronto, nunca a negociação.
“Foi por isso que Ladj resolveu iniciar o filme com as imagens da confraternização da Copa do Mundo, com o Arco do Triunfo ao fundo. Aquele é um cenário turístico, há uma idealização. O esporte reúne todo mundo, independentemente de raça, condição social ou religião. Mas o congraçamento termina ali."
"Na sequência começa o confronto. A cena não existia no roteiro. Foi acrescentada ao cabo de muita reflexão. Todo o processo do filme foi muito reflexivo para a equipe. Discutíamos cada cena, suas implicações. Íamos conscientes de cada intenção. Se o filme passa um sentimento de urgência, de tensão, de nervosismo, é graças à montagem. Participei da escrita e da interpretação, mas sei que o filme toma forma na montagem”, diz Manenti.
E Manouté acrescenta que “Ladj e todos nós conhecemos aquela vizinhança. Era fundamental que o filme passasse a verdade do lugar. A fala, a paisagem, o sentimento. Em Os miseráveis tudo é fruto da nossa vivência”. Os policiais, inclusive o interpretado por Manenti, pintado como um responsável pai de família, são abusivos.
Outro garoto, não o que sequestra o filhote, tem um drone com o qual filma as meninas trocando de roupa pelas janelas dos apartamentos no prédio popular. A mesma câmera capta o abuso da polícia. O garoto do leão é gravemente atingido. Pode morrer. O trio divide-se, parte para o confronto interno. E agora o spoiler – toda a construção dramática de Os miseráveis converge para o desfecho.
Há uma explosão cênica, uma calmaria e, de novo, arma-se o confronto. O garoto mascarado, à maneira do Coringa, e o policial, ambos armados – bomba caseira contra revólver –, estão ali no caminho sem voltas, prontos para explodir. A beleza desse desfecho está na construção do olhar. Como o espectador recebe a cena. Uma escada. Quem está no topo, quem está abaixo. Manenti e Ladj Ly em nenhum momento criam “heróis”. O mundo é muito mais complexo do que isso, mas o olhar do diretor rompe uma possível imparcialidade e toma partido.
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