Tolerância explica sucesso de 'Dois papas', diz Fernando Meirelles

Em entrevista exclusiva, cineasta diz que nunca teve resposta tão intensa como a que tem recebido com a produção da Netflix sobre Bento XVI e Papa Francisco

Carlos Marcelo 12/01/2020 04:00
Netflix/Divulgação
O diretor Fernando Meirelles durante as filmagens de Dois papas, produção da Netflix que mostra o diálogo entre Bento XVI e Francisco, nos bastidores do Vaticano (foto: Netflix/Divulgação)

Uma das produções internacionais de maior repercussão dos últimos tempos mostra o encontro de um alemão com um argentino e tem a assinatura de um brasileiro. O cineasta Fernando Meirelles, o mesmo de Cidade de Deus, é o diretor de Dois papas, produção da Netflix que imagina o convívio e as conversas entre Bento XVI (Anthony Hopkins) e Jorge Bergoglio, interpretado por Jonathan Pryce, pouco antes de o cardeal latino-americano se tornar o papa Francisco.

Pontuado por diálogos espirituosos, escolhas musicais surpreendentes e com piscadelas ao Brasil, o longa-metragem acumula indicações a prêmios importantes e tem provocado reações entusiasmadas nas redes sociais desde a entrada no serviço de streaming, no início de dezembro. Meirelles se diz impressionado com “a abrangência e espectro” da repercussão: “Vai das amigas da minha tia Odila, de 86 anos, ao Leonildo, que veio ver um vazamento em casa na semana passada e deve ter, no máximo, 23 anos.

Taxistas, balconistas e garçons não falavam comigo sobre meus filmes, agora estão falando.” Ele afirma que a Netflix ainda não repassou números sobre o público atingido: “Por ora, sei apenas que está indo bem e o que chama a atenção é o número de pessoas que assiste ao filme mais de uma vez. Mas nunca tive uma resposta pessoal tão intensa”, destaca. Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, o cineasta, de 64 anos, arrisca algumas razões para o sucesso, antecipa o tema do próximo longa-metragem e revela a torcida para que o filme receba indicações a, pelo menos, duas categorias no Oscar 2020.

Dois papas é o seu longa-metragem de maior repercussão desde Cidade de Deus. Boa parte dos comentários em redes sociais é elogiosa, inclusive de pessoas agnósticas. A que atribui o sucesso?
O filme está bem feito. Roteiro, atuações, fotografia, montagem, música, tudo funciona bem... Mas há muitos filmes em que tudo funciona bem, mas não colam. Se eu soubesse o que fez este filme “pegar”, eu repetia e estava feito, mas não tenho ideia. Meu chute é que ajudou a ideia de tolerância que o filme traz. Saber escutar o outro e conviver com quem discordamos são mercadorias em falta. A esperança de que é possível uma convivência civilizada e até afetiva deixa aliviado quem assiste. Ou vai ver que as pessoas simplesmente gostam de Dancing queen (a música do ABBA está na trilha sonora). O que sei eu?

Se Dois papas tivesse lançamento exclusivo nos cinemas, o alcance seria o mesmo que obteve nas últimas semanas ao estrear na Netflix? Essa mudança de comportamento é irreversível?
Não sou um oráculo para saber, mas minha sensação é que, se este filme tivesse sido lançado da maneira usual, ele teria passado praticamente batido. Nunca tive uma resposta pessoal tão intensa com nada do que participei e olha que a abertura das Olimpíadas foi muito assistida. Recebo diariamente WhatsApp e e-mails de amigos ou amigos de amigos comentando a experiência de assistir aqueles dois padres conversando. Nem tudo que está na Netflix recebe a mesma quantidade de mídia e investimento que colocaram nestes papas. Mesmo assim, fiquei impressionado com o poder da plataforma. Taxistas, balconistas, garçons, em geral não falavam comigo sobre meus filmes, agora estão falando.

O caminho para a produção e exibição de dramas de temática adulta, como História de um casamento e Dois papas, é mesmo o streaming? As salas de cinema ficarão destinadas aos filmes-evento, como os de super-heróis?
Pela sua base de público, filmes que são de nicho para a produção convencional são viáveis na plataforma. Parece doido dizer, mas a Netflix pode ser a salvação do cinema de arte e do cinema independente. Espero que os exibidores, uma hora, compreendam que o negócio deles mudou e passem a exibir filmes que estarão na plataforma em seguida. No final do ano passado, a O2 Play, distribuidora da qual sou sócio, distribuiu O Irlandês (de Martin Scorsese, produção da Netflix) e Dois papas. Brigamos muito para conseguir salas para esses dois filmes, com pouco sucesso. Os donos de cinemas se recusaram a exibir por causa da janela curta entre a sala e a plataforma, mesmo sabendo que teriam de duas a três semanas antes de os filmes estarem disponíveis. Não entendo por que esse faturamento de três semanas não interessa. Espero que esta visão mude. Creio que as salas ficarão mais voltadas para filmes-evento se mantiverem esta postura.

 Netflix/Divulgação
Os atores Anthony Hopkins, que vive Bento XVI, e Jonathan Pryce, que interpreta Francisco, concorreram ao Globo de Ouro e estão indicados também ao Bafta (foto: Netflix/Divulgação)


“Deus corrige o papa com um próximo” é um dos diálogos espirituosos da conversa entre Bergoglio e Bento XVI. E um cineasta, corrige os longas anteriores a cada novo filme? Que erros cometeu e tentou não repetir em Dois papas?
Me dê umas três páginas de jornal e eu listo, e ainda em ordem alfabética, os erros que cometi nos filmes anteriores. Com mais uma página, posso listar os erros deste filme. O fato é que cada projeto que tenho feito é tão diferente do anterior que, mesmo que aprenda alguma coisa com meus erros, a lição pode não ser tão útil no seguinte. Mas não tenho problemas em errar. O erro humaniza, gosto dele. Minha mãe dizia que eu era muito mal acabado: faço tudo quase até o fim, mas largo antes de terminar, canso antes de acertar. Acho que ela tem razão, mas também acho a perfeição previsível e meio chatinha. É no erro que mora a fagulha. “Qualquer jornada, por mais gloriosa que seja, pode começar com um erro”, diz Bergoglio no filme, ao falar sobre São Francisco.

Por que a trajetória de Bergoglio é mostrada em mais detalhes, inclusive com o uso em profusão de flashbacks, do que o passado de Ratzinger?
O filme se chamava O papa até maio passado. Era uma biografia do Bergoglio, com a participação do Ratzinger. Depois do filme pronto, quisemos dar uma de espertinhos e mudamos o nome para Dois papas; isso, sem querer, criou um ruído. Muita gente que gosta do Bento XVI não gosta do filme por não ver o equilíbrio entre os dois. Se chamasse O papa, talvez não se importassem.

As citações de dom Helder Câmara e Paulo Freire foram contribuições suas ao roteiro do neozelandês Anthony McArten? Poderia citar outras?
Sim, esses dois autores, a pizza, o tom irônico, a Dilma, os muros no meio do discurso de Bergoglio, Beatles, Eleanor Rigby, paisagens de Córdoba representando o divino, material jornalístico, imagens da ditadura na Argentina, padre Carlos Mujica, grafite na abertura com a história de São Francisco, as viagens do papa, os refugiados no final do filme, a improvisação no final da Copa do Mundo, etc etc etc… Nada disso fazia parte do roteiro, mas nada demais, esse é o trabalho de um diretor, suponho.

A montagem do longa impressiona por driblar a obviedade e pelo uso inteligente das fusões e inserts. Quais as recomendações passou ao montador Fernando Stutz? O que ficou de fora?
Stutz entendeu o filme que eu queria fazer e, por sorte, era também o filme que ele tinha em mente. Muitas das coisas que listei acima foram contribuições dele. Montado por outra pessoa, o filme não chegaria nem perto do que é. As impressões digitais do Stutz em Dois papas são tão nítidas quanto aquelas marcas de mãos impressas no cimento da calçada da fama em Los Angeles. Aliás, esta é a minha especialidade: chamar gente talentosa e deixar que criem. Eu poderia dizer que “dou liberdade” para os talentos que fazem parte da equipe, mas estaria mentindo; uso os caras ao máximo, mesmo, porque sei que são bons e porque eu não sou bobo.

“Tento ser eu mesmo”, afirma o Bergoglio interpretado por Jonathan Pryce. Quais sequências do filme representam cem por cento as decisões do cineasta Fernando Meirelles?
Não há nada no filme que não tenha sido uma escolha: é a minha profissão, fazer escolhas. A montagem é um longo processo de ir afinando, ou corrigindo, tudo que foi filmado, como um filtro. Mas nunca fico cem por cento satisfeito. Cortei algumas falas que gostaria de ter mantido e, se pudesse, corrigiria detalhes de mixagem e voltaria alguns cortes que acabaram saindo.

Espera indicações de Dois papas ao Oscar? Quais seus filmes favoritos entre os potenciais concorrentes?
Creio que temos chances nas mesmas categorias que fomos indicados para o Globo de Ouro e o Bafta (premiação britânica). Na minha categoria não há chances. Mas o que gostaria mesmo seria uma indicação de fotografia para Cesar Charlone (indicado por Cidade de Deus, em 2004) e de montagem para Fernando Stutz. Mas pode ser que não haja nada. É como o futebol: uma caixinha de surpresas, como sabemos. Meu favorito do ano é Coringa, só não votei nele porque votei em mim mesmo. 1917 não tem uma história tão boa, mas a realização faz dele um filme que precisa ser assistido. Honeyland merecia o Oscar, mas deve perder para Parasita.

O que achou da safra de filmes premiados em grandes festivais em 2019 e que retratam aspectos das consequências da desigualdade social, como Parasita, Bacurau e mesmo Coringa? Esse tema também o interessa?  
O tema não me interessa, me assombra. Gosto muito do viés que cada um desses filmes encontrou para falar sobre desigualdade, sem serem óbvios ou explicitamente militantes. Eu mesmo repeti este tema em quase tudo que fiz no cinema: Domésticas, Cidade de Deus, O jardineiro fiel e até em Dois papas a crise de refugiados e a exclusão aparecem, mas nunca fui tão criativo. Recebo roteiros para dirigir, mas simplesmente não consigo mais me entusiasmar por histórias que são apenas boas histórias se não funcionarem como um espelho para o mundo. Vivemos uma crise civilizatória, caminhamos para um futuro esquisito, é isso que me interessa entender e há muitas maneiras de falar isso, poéticas, fantasiosas, tudo vale. Estes filmes mencionados são originais em suas abordagens. Eu também colocaria Atlantique (indicado pelo Senegal para concorrer ao Oscar) nesta lista, é mais um filme poético ou de gênero sobre excluídos. Se você tem algo a dizer, qualquer gênero serve para isso.

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