“Você está aqui ou não está em lugar algum. Você não pode alcançar outro nível de ansiedade, hostilidade ou paranoia em qualquer outro lugar.” É Nova York – que outra metrópole poderia ser? – que desperta reações tão intensas em Gatsby Welles. Tão endinheirado quanto entediado, o universitário retorna à cidade natal para um fim de semana com a namorada, Ashleigh Enright. Vai dar tudo errado – e isso tem menos a ver com a chuva que domina Nova York do que com o abismo que divide o casal.
Gatsby é neurótico, como tantos outros protagonistas de Woody Allen. E Manhattan continua a mesma com seus cartões-postais – o Central Park, o Metropolitan, o Hotel Carlyle – já explorados tantas vezes pelo diretor. Ainda que com o mesmo pano de fundo de outras produções, Um dia de chuva em Nova York, 49º longa-metragem do mais nova-iorquino dos cineastas, é singular. Mas o que o torna atípico está mais fora da tela do que dentro dela.
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O filme estreia nesta quinta (21) em todo o Brasil – em BH, nos cines Belas Artes, Boulevard, Diamond e Ponteio. Neste semestre, também foi lançado em vários países da Europa, Ásia e América Latina graças a um esforço da Gravier Productions, empresa de Allen. Custou US$ 25 milhões – até agora, fez US$ 12,7 milhões no mercado internacional. No país, o longa está sendo distribuído pela Imagem Filmes.
Nos Estados Unidos, Um dia de chuva em Nova York muito provavelmente não chegará aos cinemas. Em agosto de 2018, a Amazon Studios, com quem o diretor tinha um contrato para este e outros três filmes, resolveu cancelar o lançamento do longa, já finalizado na época. O estúdio argumentou que entre os motivos para a quebra de contrato estava “o retorno à tona de acusações de abuso sexual”.
A Amazon também citou “comentários controversos” de Allen sobre o escândalo de Harvey Weinstein, o outrora chefão de Hollywood acusado de assédio e estupro por dezenas de mulheres da indústria cinematográfica. A Amazon argumentou que as observações de Allen sobre o escândalo – em que ele alertou sobre uma “atmosfera de caça às bruxas” – o tornaram pária no meio do cinema.
Em fevereiro deste ano, o cineasta entrou com uma ação contra o estúdio. Pediu US$ 68 milhões pela quebra unilateral de contrato, alegando que a empresa estava ciente da controvérsia quando assinou com ele. No início deste mês, um acordo entre as duas partes foi fechado. Os termos não foram divulgados.
Em maio, a Amazon devolveu a Allen os direitos de distribuição de seu filme. Até agora, nenhuma empresa demonstrou interesse em lançá-lo nos EUA. Com as portas fechadas em seu país, ele correu o Atlântico. Previsto para ser lançado em 2020, Rifkin's Festival, seu 50º longa, foi rodado neste ano em San Sebastián, no País Basco. O elenco traz o austríaco Christoph Waltz e o francês Louis Garrel.
Ao se tornar uma figura tóxica em Hollywood, Allen acabou sendo “cancelado” – para citar a expressão recorrente nas redes sociais – por vários de seus antigos fãs. E também entre seus pares na indústria. Protagonista de Um dia de chuva em Nova York, Timothée Chalamet doou o cachê recebido pelo filme para o movimento Time's Up. Rebecca Hall, outro nome do elenco deste filme, fez o mesmo. Atrizes – Mira Sorvino, Greta Gerwig, Rachel Brosnahan – vieram a público lamentar terem trabalhado com ele. Por outro lado, Jude Law, outro nome no elenco da nova produção, afirmou ser uma “vergonha” ter sido boicotada.
A todo este imbróglio, Allen, de 83 anos (84 em 1º de dezembro), responde com uma comédia romântica deliciosa, escapista, como a maior parte de sua obra – algo mais do que necessário nos tempos sombrios que nos cercam. Nada é inédito em Um dia de chuva em Nova York. Allen só se relê neste filme, que se apoia em elementos comuns a suas produções: um protagonista anacrônico cheio de questões existenciais, uma Manhattan idealizada e um troca-troca amoroso. Mas a costura acurada o deixa irresistível.
Gatsby (Chalamet) planeja com gosto seu fim de semana com a namorada, Ashleigh (Elle Fanning, doce e sonsa ao mesmo tempo). Com uma cultura muito acima da média, mas absolutamente desinteressado pelos estudos, ele passa seu tempo jogando. E sempre é bem-sucedido na jogatina, tanto que não dá a menor importância para o bolo de dinheiro que carrega no bolso graças ao pôquer.
Quer lhe apresentar a sua Nova York com tudo a que tem direito. O quarto de hotel tem uma vista completa do Central Park. Ela quer andar de carruagem, ele aceita. Mas o importante é que a namorada conheça seu lugar preferido, o Bemelman's Bar, no Hotel Carlyle (o mesmo em que Allen faz concorridas temporadas com seu grupo de jazz).
Só que Ashleigh tem outras pretensões. Estudante de jornalismo, ela conseguiu uma entrevista exclusiva com um gênio do cinema autoral de filmes que ela nunca viu (papel de Liev Schreiber). A conversa com o diretor a leva ao mundo do cinema – do diretor a garota pula para o produtor (Jude Law) e, sem saber como, cai nos braços de um astro do cinema (Diego Luna), “a melhor coisa que aconteceu desde a pílula do dia seguinte”.
PERDIDO Relegado ao papel de cão sem dono, Gatsby ladra pela cidade que tanto ama. Vira figurante no filme de um amigo, ocasião em que se encontra com a detestável irmã caçula (Selena Gomez) de uma antiga namorada. Chafurda no álcool e no jogo, enquanto se recusa a participar de um evento beneficente promovido pelos pais.
Com atores jovens nos papéis centrais, todos facilmente reconhecíveis para uma geração que não tinha idade para assistir a Manhattan (1979) e Contos de Nova York (1989) no cinema, Um dia de chuva em Nova York vem embalado para encantar plateias no campo da juventude. Caso, claro, tal plateia não decida “cancelar” Allen.
É o mesmo Allen que no filme dá uma boa resposta para seu público. “O tempo voa”, diz a garota de programa Terry (Kelly Rohrbach) a Gatsby. “Sim, infelizmente, ele voa em classe econômica”, ele comenta. “O que quer dizer com isso?”, questiona a interlocutora. “Que nem sempre é uma viagem confortável.”
Diretor sempre negou denúncias
Em janeiro de 2018, Woody Allen veio a público para se posicionar frente a novas declarações de sua filha adotiva. Dylan Farrow, de 34 anos, reafirmou, em uma entrevista na TV, que teria sofrido abusado praticado por ele quando criança. “Nunca molestei minha filha, como todas as investigações concluíram um quarto de século atrás”, afirmou Allen.
Em 1993, durante o bombástico divórcio de Allen e Mia Farrow (a atriz descobriu que ele tinha uma relação com outra filha adotiva dela, Soon-Yi Previn, então com 20 anos e até hoje sua mulher), ele foi denunciado por ter agredido a menina, na época com 7.
“Quando essa alegação foi feita pela primeira vez, há 25 anos, ela foi investigada minuciosamente pela Clínica de Abuso Sexual Infantil do Hospital Yale-New Haven e pelo Bem-Estar da Criança do Estado de Nova York. Ambos investigaram durante meses e concluíram de forma independente que não houve abuso. Em vez disso, eles acharam provável que uma criança vulnerável tenha sido treinada por sua mãe irritada a contar a história durante um término controverso”, acrescentou Allen em 2018.
Vale lembrar que Ronan Farrow, de 31, filho biológico de Allen e Mia Farrow, é o autor da reportagem que revelou os casos de estupro, abuso e assédio de Harvey Weinstein, o detonador do escândalo sexual que assolou Hollywood em 2017.