Estreia 'A cidade dos piratas', parceria de Otto Guerra e Laerte

Animação aborda impasses do Brasil em meio a crises pessoais vividas pela cartunista, que se assumiu mulher trans em 2010, e pelo cineasta gaúcho, às voltas com um câncer

Ana Clara Brant 31/10/2019 06:00
Lança Filmes/divulgação
Personagens de A cidade dos piratas se inspiram na série criada pelo cartunista Laerte nos anos 1980 (foto: Lança Filmes/divulgação)

Piratas do Tietê é o nome da série de quadrinhos criada pela cartunista Laerte Coutinho no começo dos anos 1980. Navegando pelo rio paulistano, o bando busca vítimas para saquear ou simplesmente torturar, por mera diversão. Apesar do sucesso dos personagens, eles foram abandonados por seu criador.
 
“Aquelas piadas acabaram soando meio machistas, até homofóbicas. A ideia do caos e da estupidez não é uma coisa que eu produziria nos dias de hoje. É uma realidade muito diferente de mim, foi coisa de uma época. Criei e produzi aquilo do modo como eu era e enxergava as coisas, mas tudo mudou”, explica Laerte, que se assumiu mulher transgênero em 2010.

Não é que rejeite os piratas ou qualquer outro de seus desenhos, mas o mundo girou, afirma a cartunista. “E eu girei com ele. Enquanto autora da minha obra, às vezes fico tentada a renegar parte dela. Mudei muito, mas é um erro renegar não só o próprio trabalho como o dos outros. Deve-se buscar compreender as coisas dentro de cada contexto”, afirma Laerte



Talvez esse tenha sido um dos empecilhos – além da questão orçamentária – para o diretor gaúcho Otto Guerra, um dos nomes mais importantes da animação brasileira, concretizar o filme, que levou quase 20 anos para ser concluído. O roteiro, aliás, teve várias versões.
 
A cidade dos piratas, que estreia nesta quinta-feira (31) em BH, une as trajetórias de Otto e Laerte. Quando trabalhavam juntos neste projeto, ambos passaram por mudanças pessoais e doenças inesperadas. “Como o próprio pai, ou melhor, a própria mãe, renega seus filhos?”, queixa-se o cineasta em uma das cenas.

O filme, que ganhou menção honrosa no Festival de Cinema de Gramado em 2018, é considerado por Otto sua obra mais polêmica e libertadora. “Pelo fato de ter descoberto um câncer no meio do caminho, achei que ia morrer e aquele seria meu último trabalho, meu epitáfio. Então, quis fazer tudo o que tinha vontade”, ressalta.

Assim como Laerte, o diretor se transformou em um personagem de animação. “Foi a primeira vez que isso aconteceu na minha carreira. O roteirista me sacaneou (risos). Não sou aquele diretor autoritário que ele mostra ali, apesar de ter brigado com a equipe no decorrer do processo”, brinca o diretor, que se recuperou do câncer no cólon.

Num de seus diálogos, o filme é tachado de “vanguarda” e “nada feijão-com-arroz”. Otto Guerra sempre se identificou com o universo da tríade de cartunistas formada por Angeli (fonte de inspiração de seu longa Wood & Stock: sexo, orégano e rock'n'roll), Glauco (assassinado em 2010) e Laerte. “Eles criaram personagens transgressores, undeground, algo que tem muito a ver comigo. Bebemos nas mesmas fontes.”

O cineasta avisa que é difícil rotular A cidade dos piratas. “Não é ficção nem documentário. Nem tem história linear. Filme fora do padrão, está baseado no sistema marginal, anárquico. Esse é um longa que não é para entender, mas para assistir muitas vezes e sentir.”

De acordo com Laerte, mesmo um pouco caótico e confuso, A cidade dos piratas consegue transmitir a sua mensagem e fazer sentido. “É assim também com o Brasil. Ele não deixa de ser uma metáfora. O país está caótico, mas existe um sentido e é isso que nos orienta em relação às ideias e movimentos.”

HOMOFOBIA  

Por meio da história do Brasil – inclusive fatos recentes –, o filme busca fazer uma reflexão sobre arte, cultura pop e a sociedade contemporânea. Personagens de Laerte – como o político homofóbico Azevedo, que sonha com genitálias e ganhou voz de Marco Ricca – são parte do cotidiano do país. Por outro lado, há Ivan (dublado por Matheus Nachtergaele), que esconde da mulher o prazer de se travestir.

“Essas questões e figuras pertencem, relativamente, ao cenário cultural e político brasileiro. Em qualquer época você encontra gente mais autoritária, gente mais democrática. Nesse sentido, o filme não é profético, mas não deixa de ser um alerta para várias coisas, inclusive a homofobia que estamos vivendo atualmente. A onda de conservadorismo está mais forte”, conclui Laerte.

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