Donos de um posto de gasolina em Alsina, uma pequena cidade argentina, o ex-jogador de futebol Fermín Perlassi (Ricardo Darín) e sua mulher, Lidia (Verónica Llinás), propõem ao borracheiro Fontana (Luis Brandoni), amigo do casal, reativar uma distribuidora de grãos, por meio de uma cooperativa que reuniria outros trabalhadores e empreendedores locais, a convite do trio.
“– Neste momento, será que é uma boa ideia?”, pondera Fontana.
“– Claro que é. Este é um bom momento, porque pior do que está não pode ficar”, argumenta Fermín.
E assim começa o longa A odisseia dos tontos, que estreia nesta quinta-feira (31) no Brasil, com um grupo de amigos raspando suas economias para abrir um negócio, no ano de 2001. Ocorre que a fragilidade da economia argentina podia piorar – e muito.
No final daquele ano, o governo Fernando De La Rúa decretou o chamado “corralito”, um congelamento de depósitos semelhante ao confisco que o presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) promovera uma década antes no Brasil. A revolta (na vida real) foi gigantesca.
Os argentinos saíram às ruas, num protesto conhecido como o “estampido”, ameaçaram incendiar o Ministério da Economia, viram De La Rúa abandonar a Casa Rosada de helicóptero (era impossível sair por terra, dada a multidão que protestava na Praça de Mayo) e uma sucessão-dominó em meio à crise, que levou o país a ter cinco presidentes no espaço de poucos dias.
Na Alsina desse longa de Sebastián Borensztein, a reação inicial é de tontura, apatia e culpa. Mas o roteiro, baseado no livro La noche de la usina, de Eduardo Sacheri, autor também do sucesso editorial e cinematográfico O segredo dos seus olhos (Juan José Campanella, 2009), promove uma reviravolta quando os ex-futuros sócios descobrem que foram vítimas de um golpe dentro do golpe.
Os milhares de dólares que eles reuniram não estavam, de fato, apenas indisponíveis para eles, depois de transferidos de uma caixa de segurança bancária para a conta-corrente, na véspera do “corralito”, de acordo com a sugestão trapaceira do gerente do banco. O dinheiro do grupo e de todos os demais correntistas havia sido levado do banco pelo gerente e um comparsa.
Ao se dar conta de que havia sido roubado, o grupo decide reaver o que é seu. A odisseia é dos “tontos” porque se trata não apenas de pessoas facilmente enganáveis, mas sobretudo de indivíduos que escolhem ter princípios num país que não os tem. Mas a crítica social e o discurso político são apenas laterais no longa e surgem em boutades como “o peronismo é uma relíquia, mas ainda está vivo”. Ressaltar esses aspectos não era seu objetivo, conforme afirma Borensztein na entrevista a seguir ao Estado de Minas.
O filme se move no terreno da comédia e traz Ricardo Darín atuando pela primeira vez ao lado do filho, Chino Darín. Com esses ingredientes, A odisseia dos tontos já levou 1,8 milhão de espectadores ao cinema na Argentina e foi o título escolhido pelo país vizinho para representá-lo na corrida pelo Oscar de melhor filme internacional. Ou seja, melhor do que está ainda pode ficar.
A odisseia dos tontos estreia no Brasil num contexto em que há protestos massivos em países como o Chile e o Líbano, e a Argentina acaba de sair de uma eleição presidencial que restituiu o peronismo ao poder, em meio a um cenário econômico incerto. Quando vocês filmaram, supunham que a frase “pior do que está não pode ficar”, dita pelo personagem de Ricardo Darín inconsciente de que estava às vésperas do “corralito”, pudesse ganhar essa espécie de eco?
Começamos a fazer esse filme em 2016 e, desde então, tudo foi mudando. Ninguém imaginava que, na estreia, estaríamos de novo numa crise. Tudo o que queríamos era contar essa história com emoção, com humor, com aventura. Nosso objetivo era fazer um filme benfeito e que estivesse à altura do livro. O que acontece depois já está nas mãos do espectador, num contexto e num momento que já não pertencem mais ao filme.
O contexto da história é o “estampido” social de 2001. No entanto, o filme se concentra num grupo de personagens que estão fora do epicentro da crise. A ideia era retratar uma espécie de “estampido” individual?
Trabalhamos com a ideia de uma espécie de Exército de Brancaleone que vai para uma empreitada para a qual não está nem minimamente preparado. Mas, diante da impotência, decidem tomar as rédeas da situação. Esse era o foco. Se você observar, o grupo forma uma espécie de metáfora da sociedade. São pessoas que vêm de diferentes estratos sociais, desde o indigente rural até a dona de uma empresa de transportes. Há um corte transversal e vertical do que é a sociedade. A ideia original era tomar essa metáfora social e, claro, mostrar como todos sofrem os efeitos diretos e colaterais do que foi a grande crise de 2001.
A estreia coincide com uma discussão a respeito do sentido e das consequências das manifestações antissistema, que se dá inclusive no âmbito do cinema, em filmes como Coringa. Acredita que seu longa se inclua nesse debate do papel do indivíduo frente as instituições?
O que percebo das manifestações que estamos vendo é um cansaço geral com as instituições e os governos. As pessoas estão cansadas de se sentir usadas, de não ser levadas em conta, de ser as minorias que ficam com os benefícios e os privilégios, enquanto, para a maioria, o esforço da vida inteira se reduz, no melhor dos casos, a comer e ter um teto. Estamos num momento em que tudo isso está tendo um sério questionamento. E o modo como esse questionamento está sendo feito é por convocação espontânea. São então dois fenômenos: o cansaço geral das pessoas e a tecnologia, que permite que as pessoas se autoconvoquem sem uma liderança.
No caso de Coringa, o “cansaço” deriva numa reação de extrema violência. A odisseia dos tontos parece refutar toda violência, com personagens trabalhadores que se orgulham de “não roubar nenhum peso” e quer ter de volta apenas o que é seu e nada mais. É uma tomada de posição pela não violência?
Na verdade, o que o filme propõe não é uma reação coletiva, é uma reação de um grupo que sofre um golpe muito particular no contexto do “corralito”. As manifestações têm a ver com esse cansaço advindo do fato de o mais fraco na sociedade ser desprezado pelo mais forte. É o que acontece no Coringa – um sujeito que tem problemas mentais e, em vez de escutá-lo e estender a mão, tudo o que fazem é rejeitá-lo. É lamentável que a reação não seja pacífica. Mas no nosso filme é diferente, porque não estamos contando a realidade, estamos contando de certa forma uma fábula. Sabemos muito bem que um exército tão pouco preparado para uma empreitada como aquela nunca vence. Costuma ser o mal que vence, não o bem. Mas estamos amparados pelo espaço da fábula.
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Tem expectativa em relação ao Oscar?
Não faz muito sentido ter expectativa, porque nem sequer sabemos como é a competição. Conhecemos seis ou setes filmes e os outros oitenta e tantos nem fazemos ideia de como são. É uma boa fantasia, mas tratamos isso com ilusão e com cautela. O filme fez 1,8 milhão de espectadores até agora na Argentina e deve ficar em cartaz até dezembro. É um bom buzz, mas não é garantia de nada e sabemos bem disso.
A trilha de A odisseia dos tontos tem música de Gustavo Santaolalla, amigo do presidente eleito, Alberto Fernández. Por outro lado, o ator Luis Brandoni, que interpreta um dos protagonistas, foi o responsável por convocar, ao lado do cineasta Juan José Campanella, uma das maiores manifestações de apoio a Mauricio Macri durante a campanha eleitoral. Como os artistas argentinos têm lidado com a cisão política?
Nós, artistas, não temos nos rendido a essas diferenças. O elenco era multi-ideológico. Além de Brandoni, tínhamos outras pessoas que vestem outras camisas na equipe. Mas fizemos a mesma coisa que os personagens fazem no filme – as diferenças ficam de lado. E assim curtimos o nosso trabalho, que é o que mais gostamos de fazer. Tivemos uma ótima convivência e ótimos momentos juntos. Foi o que eu chamo de uma fantástica experiência anticisão.
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