Sua origem é nos quadrinhos, onde se tornou um dos vilões mais icônicos da cultura pop. Em suas diversas versões em HQs, animações e também na telona, ele já assumiu uma face mais violenta tanto quanto outra mais cômica. Agora, no entanto, o Coringa interpretado por Joaquin Phoenix no longa de Todd Phillips, em cartaz desde o último dia 3, rompeu as barreiras do entretenimento lúdico dos heróis da fantasia, onde bem e mal costumam aparecer devidamente caracterizados e separados um do outro.
Premiado com o Leão de Ouro em Veneza, Coringa reacendeu um acalorado debate sobre o impacto da representação da violência no comportamento humano, se inseriu na discussão a respeito do controle de armas nos Estados Unidos e levou a polícia de diversos estados americanos a ficar de prontidão no dia de sua estreia, em alerta para agir em eventuais tiroteios perpetrados por fãs do personagem.
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'Coringa' estreia premiado e sob acusação de incitar violênciaEstreia de 'Coringa' coloca em alerta a polícia de Los AngelesLeão de Ouro em Veneza, 'Coringa' sai na frente para o OscarNa opinião do professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG e pesquisador do CNPq Verlaine Freitas, estudioso de estética, psicanálise e cultura de massa, “toda obra de arte que tem algum impacto midiático carrega em si a possibilidade de despertar afetos que movem as pessoas numa determinada direção”. Porém, ele pondera que outros aspectos intrínsecos à trama podem ser a razão da ampla repercussão que o filme está ganhando.
“A questão é o quanto esse efeito, essa dimensão política que a obra causa é importante para a gente analisar o filme como obra de arte. Entendo a preocupação das autoridades com manifestações que possam decorrer, mas é importante perceber o valor artístico da obra para responsabilizá-la por aquilo que se faz dela. Esse fator da mobilização em torno da figura do Coringa é relevante na história, no enredo? É o caso de várias análises”, afirma.
O pesquisador aponta que “todo comentário de obras culturais tem a ver com uma determinada diretriz de ideias” e afirma que “é evidente que as vozes partidárias da manutenção do poder econômico nas mãos de poucos vão questionar a legitimidade política desse filme. Afinal, ele retrata uma reação popular contra um esmagamento de suas vozes, direitos, bens, dignidade humana. E essas pessoas pobres são literalmente chamadas de 'palhaços' por um magnata no filme (Thomas Wayne, interpretado por Brett Cullen). Se ele fosse no sentido de defender o status quo, esse efeito político seria mais específico”, argumenta.
Todd Phillips apresenta o Coringa antes de ser Coringa. Na história, ele é o jovem Arthur Fleck, pobre e portador de distúrbios mentais, que sonha em ser comediante, mas vive de fazer alguns bicos como palhaço.
Todd Phillips apresenta o Coringa antes de ser Coringa. Na história, ele é o jovem Arthur Fleck, pobre e portador de distúrbios mentais, que sonha em ser comediante, mas vive de fazer alguns bicos como palhaço.
Tido como um esquisito por todos ao seu redor, Fleck enfrenta uma rotina de humilhações, agressões, insultos e fracassos. A partir de determinado momento, ele começa a reagir de forma violenta contra aqueles que o atacam e vê seus atos celebrados por parte da população de Gotham City, ainda que ele seja anônimo no contexto. Isso porque suas primeiras vítimas, por acaso, são pessoas ligadas à bolsa de valores, o que é interpretado e ganha força na ficção como “um ataque ao sistema”.
A acolhida inicial ao longa em Veneza ressaltou esse aspecto, a começar pela presidente do júri da competição pelo Leão de Ouro, a cineasta argentina Lucrecia Martel, que elogiou sua capacidade de apresentar “uma reflexão sobre os anti-heróis, mostrando que talvez o inimigo não seja o homem, mas o sistema”.
Escrevendo para o diário britânico The Guardian, Xan Brooks, ainda em Veneza, definiu Coringa como “um filme gloriosamente ousado e explosivo, um conto quase tão distorcido quanto o homem em seu centro, cheio de ideias e voltado para a anarquia”.
A publicação norte-americana Variety, por sua vez, afirmou que “uma rebelião contra a elite dominante – que é o que a ação de Arthur passa a simbolizar – é mais plausível agora do que há uma década”. O longo aplauso ao Coringa na sessão de gala em Veneza e a boa recepção da crítica impulsionaram apostas de que o longa seria um forte candidato ao Oscar.
No entanto, depois de sua estreia mundial, o filme de Todd Phillips passou a ser intensamente criticado, seja por sua suposta intenção de incitar a violência, seja por suas falhas cinematográficas, como no caso do crítico do New York Times A. O. Scott, que escreveu: “Para valer a pena discutir, um filme deve, em primeiro lugar, ser interessante. Deve ter, se não um ponto de vista coerente, ao menos um conjunto de temas elaborados e instigantes, algum tipo de contato imaginativo com o mundo. Coringa é um exercício vazio e nebuloso de segunda mão e filosofia de segunda classe” .
No Brasil, até mesmo o assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais Filipe Martins se juntou aos críticos e usou seu Twitter para se referir ao filme como “uma demonstração do que a anomia social e o ressentimento esquerdista podem fazer com uma mente perturbada”.
Para Verlaine Freitas, o Coringa é “uma ficção, uma obra cinematográfica que vale por si, e não como um panfleto que induza à ação”. O professor observa que “analisar repercussões políticas de uma obra faz com que a gente não focalize nas características específicas dela. Os efeitos não estão conferidos na qualificação dela. No filme, podemos ver o Coringa pouco motivado a praticar atos identificados com aquilo que seria uma revolta popular contra ricos. O personagem não está inserido num universo popular. Tudo acontece à revelia de sua ação. Ele sofre com problemas graves de saúde mental e vários traumas, que fazem com que ele seja simplesmente ignorado pela sociedade. Ele não participa do levante popular. Os atos de violência que ele pratica são mostrados como reações individuais a agressões injustificadas que sofre. Ele não tem nenhuma atitude perversa de usar o crime e o mal como algo que lhe dê prazer ou de realçar como anti-herói, antes da cena final, em que ele mal entende o que está acontecendo.
Rambo
Freitas cita ainda que outros filmes violentos, como os de Quentin Tarantino ou os do personagem Rambo, “não costumam levantar esse tipo de debate. Mas quando é uma violência de cunho político, de revolta das massas, aí é perigoso”.
Se a crítica se divide entre os que consideram o longa uma realização brilhante e os que o desprezam intensamente, pelo menos entre o público o Coringa tem ido bem. O longa quebrou recordes de bilheteria para o mês de outubro, com uma performance de público muito bem-sucedida não apenas nos Estados Unidos, onde lidera a bilheteria há duas semanas, como no Brasil – fez 1,7 milhão de espectadores em sua primeira semana em cartaz.
PERSPECTIVA DE OSCAR
Afinal, Coringa é ou não um forte candidato ao Oscar? Depois de toda a controvérsia que o longa de Todd Phillips suscitou, a revista The Hollywood Reporter ouviu 46 membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood para saber o que acharam do filme e ter, assim, um termômetro de suas chances de indicações e eventuais prêmios.
Ao publicar as opiniões, a revista identificou os participantes da pesquisa apenas por seu gênero e pelo setor artístico ao qual pertencem. Uma mulher da produção-executiva definiu o filme como “estranho e deprimente” e “bastante desagradável no geral, apesar de ótima performance”.
Outra, da área de montagem, disse que “Coringa é lindamente feito em todas as áreas e sublime, um filme quase perfeito, exceto, para mim, por uma quantidade excessiva de violência. Espero que Joaquin Phoenix e muitos outros que trabalharam nele recebam indicações ao Oscar por seu trabalho extraordinário”.
Dos entrevistados, metade revelou ainda não ter visto o filme. Entre esses, alguns disseram ter boas expectativas e outros, não; devido à abordagem da violência. Uma das entrevistadas, ligada ao setor da música, afirmou que assistirá a Coringa, “mas sentada perto da saída”. “É louco pensar assim, mas é preciso”, declarou.
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