“Não é um pequeno papel. Não existe pequeno papel. São papéis. E adorei o meu.” Com mais de 50 anos dedicados a criar personagens e dirigir atores interpretando-os, o dramaturgo e encenador Eid Ribeiro tem autoridade para falar do assunto. No caso específico, refere-se ao seu próprio personagem no longa-metragem No coração do mundo, dos diretores Gabriel e Maurílio Martins, em cartaz desde quinta-feira passada (8) nos cinemas.
Leia Mais
Diretor une documentário e ficção em filme sobre tragédia de MarianaFabrício Boliveira vive a glória e a decadência de 'Simonal' na telonaFesta do Cinema Italiano traz para BH filmes clássicos e inéditos Jovem profissional enfrenta o assédio do chefe em longa israelenseEm longa italiano, irmãos se reaproximam quando um adoece gravemente“A Kelly me indicou (para o papel)”, conta o diretor e ator bissexto. “Precisavam do personagem e chamaram o (diretor e dramaturgo) João das Neves (1935-2018). Ele não pôde e acabei fazendo. Achei ótimo. Sempre gosto de dar força para o cinema. É tudo tão caro e tão difícil no Brasil.” Antes do convite dos cineastas Gabriel e Maurílio Martins, ele já havia somado à sua riquíssima trajetória teatral participações como assistente de direção no longa A dança dos bonecos (1986) e uma colaboração no roteiro de Uma onda no ar (2002), ambos de Helvécio Ratton. Também atuou em duas produções do filho Tiago Mata Machado: O quadrado de Joana (2007) e Gaio Filho (2008).
Desta vez, aos 76 anos, Eid emprestou seu talento e experiência aos realizadores que levaram o bairro Jardim Laguna, em Contagem, para o “coração do mundo”. “Gostei muito da experiência com o pessoal da Filmes de Plástico, principalmente por ser em Contagem. Achei tão bonita a convivência ali, a vizinhança – tia, avó, mãe presentes. Uma vizinha empresta isso, outra aquilo”, afirma. O título foi exibido no Festival de Roterdã, na Holanda, em janeiro deste ano.
Na história, Ana trabalha como trocadora na linha de ônibus que vai do Laguna para BH e passa as viagens pensando em, um dia, se mudar dali. Entre os motivos que a prendem a Laguna estão os cuidados com o pai, debilitado pela demência, com quem divide a casa.
MACHISMO “Há uma história para além daquela. A relação dele com a mãe dela, que já morreu, foi sempre machista. A Ana se vê numa situação que a faz pensar na falta de coragem da mãe. E aí pulsa muito para ela aquela relação de afeto com o pai, que é, ao mesmo tempo, de cárcere. A dependência do pai a deixa presa naquele bairro, naquela casa, cuidando dele. Ela topa o risco com o namorado, mas vê um julgamento do pai, do homem que julga a liberdade da mulher, de forma muito forte, com o olhar”, afirma Kelly Crifer.
Na tela, a relação entre pai e filha se dá com poucas palavras, mas muita força gestual. Ela faz a barba do pai, troca a fralda dele, prepara as refeições, sempre com delicadeza e afeto, mas transparecendo um incômodo imposto pela situação.
Se as cenas exigiram sensibilidade e cumplicidade, a dupla tinha as credenciais para enfrentar o desafio. Também com uma carreira no teatro, Kelly se refere a Eid como “um mestre”, que conheceu no começo dos anos 2000, quando iniciou sua trajetória nas artes cênicas com um espetáculo circense chamado Senta que o leão é manso. “Ele me incentivou muito no teatro, desde a época em que eu estava na UFMG, me deu livros e, depois, nos reencontramos, em 2011, quando ele me dirigiu na peça Antes do silêncio (espetáculo vencedor do Prêmio Sesc/Sated daquele ano). Então foi uma ótima surpresa ele ser meu pai no filme”, diz a atriz, que é também professora do Grupo Galpão há oito anos.
Confira o trailer de 'No coração do mundo':
Sobre a convivência com Eid Ribeiro no set, Kelly comenta: “Fiquei impressionada quando entrei na casa onde seriam as filmagens e ele estava olhando tudo, cada detalhe. No set, ele me ensinava e me mostrava como é importante observar as paredes, porque o tipo de coisa na casa já contava sobre os moradores que a habitam. Ele ficava um tempo grande observando, construindo o personagem. Foi uma honra muito grande estar ali”. Houve, no entanto, uma dificuldade para Kelly. “A cena em que tive que dar um tapa na cara dele foi muito difícil, quase não consigo”, diz.
Ao longo dos 40 dias que passou no bairro Laguna para a produção do longa, a atriz perdeu o pai, o que acabou aumentando sua ligação com o pai ficcional. “Isso me fortaleceu muito. Pude transformar em potência de vida, de arte e isso me trouxe uma coisa louca em relação ao início e ao fim das coisas”, afirma ela.
CONCENTRAÇÃO A sintonia entre os dois também passou pela experiência nos palcos, transportada para as câmeras. “O cinema é outra coisa para o ator”, observa Eid, que atribui uma importância muito grande ao ambiente onde as filmagens se dão. “Num filme, é a coisa física ali naquele espaço. Exige uma concentração muito grande. No teatro, o espaço é ilusório, isso traz uma energia diferente, também na relação com quem você contracena”, explica. Kelly tem um ponto de vista parecido e considera que “o cinema é mais solitário. Há uma equipe enorme, mas a história está ali com você, enquanto o teatro é mais coletivo”.
Porém, ter participado do curta Contagem (2010), dos mesmos cineastas, interpretando a mesma personagem, facilitou o processo para a atriz. “Fui muito feliz de o Gabriel e o Maurílio (Martins) terem me encontrado no teatro. O cinema geralmente tem personagens prontos, mas, neste caso, foi mais aberto, mais colaborativo. Isso permitiu potencializar esse lugar de fala que o artista do teatro carrega fortemente. Estar em cena é se colocar no lugar do outro e o posicionamento do meu corpo é o recurso”, diz ela. Além de Kelly Crifer e Eid Ribeiro, o elenco de No coração do mundo tem Grace Passô, cuja carreira também se divide entre cinema e teatro. “Nesse filme, eles trabalham muito o pertencimento. São apaixonados pelos personagens. E nós também trazemos isso do teatro”, observa Kelly.
Eid diz já ter tentado fazer mais coisas no cinema, mas perdeu o ânimo por causa dos custos elevados de produção e das dificuldades de distribuição. “O imperialismo americano continua, cinemas de shopping cheios, e os filmes brasileiros ficam à margem. Vai pouca gente e sai de cartaz. E a coisa está piorando, obviamente, neste governo”, diz o diretor. No entanto, ele identifica um movimento positivo, do qual No coração do mundo faz parte. “O cinema brasileiro está ganhando outra característica no olhar diferenciado e no tratamento dos locais onde os filmes são rodados. A periferia e o bairro estão voltando às telas. Vemos isso aqui, com a Filmes de Plástico, em Brasília, em Pernambuco. Estão trazendo de volta a linguagem e a força do povo, como o Cinema Novo fez.”
Ainda dentro do aspecto mais otimista de sua visão, ele exalta a “pupila”, com quem teve “um emocionante reencontro” em cena. “Ela é muito talentosa e concentrada no trabalho. Tem essa fortaleza toda, que já mostrava desde o circo. Acredito que a Kelly vá estourar no cinema brasileiro depois desse longa.”
.