Em 1837, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) escreveu o conto sobre uma jovem sereia que sonhava em abandonar a vida nos mares e se tornar humana. Chamava-se Sereiazinha e havia poucas informações sobre suas características físicas, a não ser que tinha "a pele clara e delicada como uma pétala de rosa”.
Em 1989, a Disney adaptou o clássico da literatura. No desenho animado A pequena sereia, o estúdio batizou a protagonista como Ariel, dando a ela olhos claros, cabelos ruivos e cauda verde. A atriz e dubladora norte-americana Jodie Benson, que emprestou sua voz à personagem, revelou à revista Entertainment Weekly os bastidores da animação: "Lembro-me das primeiras artes conceituais, e ela era loira. Tinha um rosto como o das sereias em Peter Pan, mais maduro e com mais glamour.
Jodie também deu sua opinião sobre as características da protagonista. "Lembro-me de dizer para eles (da produção) que era curioso estarem fazendo outra princesa loira depois de Cinderela e Aurora (A bela adormecida). Pouco depois, trocaram o cabelo para vermelho. E assim surgiu a primeira princesa ruiva", lembrou.
Fato é que a pequena sereia ruiva da Disney ficou no imaginário dos fãs. Na semana passada, o estúdio anunciou a intérprete de Ariel no longa em formato live-action, cujas filmagens começarão em 2020. A escolha da norte-americana Halle Bailey, atriz e cantora de 19 anos, causou polêmica. Motivo: a jovem é negra. Pela segunda vez, uma afrodescendente interpretará uma princesa da Disney. Em 1997, Brandy Norwood fez o papel de Cinderela no longa que tinha Whitney Houston como fada madrinha e Whoopi Goldberg como rainha.
Durante três dias, a polêmica sobre Ariel permaneceu na lista dos temas mais comentados do Twitter mundial. "Só falta colocar uma atriz loira para interpretar a Tiana de a Princesa e o sapo, que é negra, ou uma ruiva para fazer a Pocahontas", queixou-se uma internauta.
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A atriz e cantora mineira Raíssa Alves interpreta Ariel há quase 10 anos na montagem da Cyntilante Produções, de Belo Horizonte. Ela afirma que o assunto é delicado. "É natural uma decepção e até certa frustração de quem é muito fã, até porque foi a própria Disney que criou a versão da Ariel ruiva. Mas, ao mesmo tempo, se há alguma produção em que seja possível focar na questão da representatividade, é justamente A pequena sereia. Ser mitológico, essa personagem não tem etnia ou raça bem definida", observa.
Halle Bailey se mostrou surpresa – e também emocionada – ao ser escolhida. A mais cotada era uma ex-estrela da Disney: a atriz e cantora Zendaya, que a parabenizou pela escalação. O post de Halle no Twitter traz uma ilustração icônica de Ariel no mar, em cima de uma pedra. A sereia se parece com ela, tem cabelos e tom da pele mais escuros. Na legenda, a atriz escreveu: "Sonho que se torna realidade".
Rob Marshall (O retorno de Mary Poppins e Chicago), diretor do longa, é só elogios para a nova Ariel. "Halle Bailey tem aquela rara combinação de espírito, coração, juventude, inocência e substância, qualidades intrínsecas necessárias para desempenhar esse papel icônico", justificou.
DISNEY Fernando Bustamante, diretor artístico da Cyntilante Produções, conta que se baseou na versão da Disney para criar a peça, em cartaz há 19 anos. Hans Christian Andersen, lembra ele, não deu detalhes sobre a sereia. "No começo, a atriz pintava o cabelo de ruivo, mas por questão de custos e logística, decidimos comprar uma peruca. Acabou sendo assim até a nossa Ariel mais recente, a Raíssa", explica.
Na opinião de Bustamante, a Disney tem responsabilidade em tudo o que faz, sobretudo com relação ao público infantil. Para ele, a importância que a valorização da mulher e dos negros tem alcançado pode ter influenciado a decisão da empresa.
"Várias coisas vêm sendo revistas. É muito positivo quando uma marca como a The Walt Disney Company abraça a questão da inclusão, da diversidade. Li que a personagem da gaivota terá a voz de uma atriz de origem asiática (Awkwafina, de Podres de ricos e Oito mulheres e um segredo)", comenta.
Bustamante considera natural que o público, no primeiro momento, estranhe a nova sereia pelo fato de a imagem de Ariel com cabelos vermelhos ser tão marcante. Mas pondera: “Uma das versões do musical A pequena sereia, na Broadway, trazia um negro na pele do príncipe Eric, par romântico da Ariel. Já foi um começo. A Disney não se apega a ser totalmente fiel à animação, até porque é outra linguagem. A gente espera que respeitem as características da Halle e não mudem o tom de cabelo dela ou algo assim."
RACISMO A atriz Andrea Rodrigues, integrante do Grupo Espaço Preto, da Cia. Bando e do Coletivo Segunda Preta, classifica como racista a reação de quem é contra a escolha de Halle Bailey para o papel. "Estão questionando a etnia de um ser que não existe, de uma figura mitológica. Se isso não é racismo, não sei mais o que é. As pessoas têm muita dificuldade de se assumir como racistas e negam a nossa própria história. Halle é atriz e cantora talentosa, com uma voz linda. Tem todos os requisitos para o papel", ressalta Andrea.
Atualmente, ela participa do elenco da peça Abena, fazendo o papel de uma princesa negra, a mais bonita do mundo. "É um dos trabalhos do repertório da Cia. Bando. Fala sobre uma princesa negra linda, inteligente, esperta, o que gera comoção e um estranhamento. As pessoas não estão acostumadas com princesas e príncipes negros, infelizmente", lamenta.
Andrea enfatiza que há confusão sobre raça e cor em polêmicas nas redes sociais, como a que envolve a nova Ariel. "A raça é fundamental para a construção da história. A gente vê isso nas próprias produções da Disney, como Aladdin, Mulan e A princesa e o sapo. Cor de cabelo é outra coisa: temos ruivos negros, ruivos brancos. No caso de A pequena sereia, o fator raça não é primordial para a história. Ser branca ou negra não faz a menor diferença", conclui.