Campanella volta à ficção com filme sobre estrela decadente

Diretor argentino lança nesta quinta (23) 'A grande dama do cinema', em que retrata vidas deliciosamente amargas de artistas abandonados pelo sucesso

por Silvana Arantes 23/05/2019 08:40

FÊNIX FILMES/DIVULGAÇÃO
Graciela Borges interpreta a protagonista Mara Ordaz, que sente falta da fama e é alvo de um golpe imobiliário (foto: FÊNIX FILMES/DIVULGAÇÃO)

Mara Ordaz (Graciela Borges) foi uma diva da época de ouro das telas argentinas em A grande dama do cinema, que estreia nesta quinta-feira (23), em Belo Horizonte. Com seus 70 anos já bastante ultrapassados, ela sente falta dos sets de filmagem e da admiração dos fãs a “cada minuto, de cara hora de cada dia”. Por isso passa seu tempo revendo os próprios filmes, numa mansão que é também uma espécie de museu dos seus anos de glória, em que uma estatueta do Oscar de melhor atriz é o maior destaque.

Longe do burburinho de Buenos Aires e da memória do público, Mara vive em atrito constante com seus únicos companheiros e demais moradores da casa – o marido Pedro (Luis Brandoni), que vive preso a uma cadeira de rodas e à frustração de não ter tido êxito como ator; o roteirista Martín (Marcos Mundstock), hoje hábil na sinuca, no xadrez e na preparação de chá de amêndoas; e o cineasta Norberto (Oscar Martínez), que se transformou num caçador de doninhas.

Responsáveis pelos títulos que projetaram Mara ao sucesso, os dois últimos passaram a viver com a estrela porque eram casados com uma irmã e a melhor amiga dela. A ausência das duas mulheres na casa não será somente um detalhe nessa trama com que Juan José Campanella (O filho da noiva) volta aos longas de ficção depois de O segredo dos seus olhos (2009) – em 2013, o diretor lançou uma animação, Um time show de bola, e desde então ficou mais voltado ao teatro e à TV.

DRAMA Campanella retorna em grande forma. Os diálogos ágeis, bem-humorados e cortantes, sua marca registrada, ganham do quarteto de protagonistas um tratamento de luxo. Os atores parecem saborear os diálogos, que são puro sarcasmo e provocação. Exemplo: com a estatueta dourada nas mãos, Mara diz: “É verdade que só duas atrizes no mundo conseguiram isso com um filme estrangeiro. Mas é uma estátua, fria e dura. Sophia Loren, digo”.

A vertente de comédia do longa é perpassada por um tom de suspense, outra área que Campanella domina sem hesitações, e por trechos de drama, como na cena em que o cineasta Norberto usa de sinceridade e afeto para explicar ao velho amigo Pedro porque ele nunca conseguiu ser um bom ator.

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Oscar Martínez, Luis Brandoni e Marcos Mundstock vivem o marido cadeirante, o cineasta e o roteirista que projetaram ao sucesso a estrela agora esquecida (foto: FÊNIX FILMES/DIVULGAÇÃO)
O conflito surge na história quando um jovem casal de corretores imobiliários Francisco (Nicolás Francella) e Bárbara (Clara Lago) – aparece na propriedade dizendo terem errado o caminho para Buenos Aires e pedindo ajuda. Ao reconhecerem a estrela, passam a bajulá-la. Daí para colocarem em prática o plano de convencer Mara a vender a casa por uma bagatela é um pulo. Francisco, sobretudo, exercitará para isso a arte da sedução.

A grande dama do cinema é um remake do longa de 1976 Los muchachos de antes no usaban arsénico, de José Martínez Suárez. Nessa atualização, Campanella promove o encontro de dois mundos separados – um arcaico; outro moderno; um que se fia na experiência; outro no ímpeto – mas não necessariamente desiguais.

Quando Bárbara diz a Mara que o comportamento dos homens da casa a deixa aflita, Mara responde: “São perturbados, bizarros, perversos. No nosso ambiente isso é normal”. Bárbara, por sua vez, é adepta de “uma só regra: ganham os fortes”. Descrito com uma fotografia (de Félix Monti) que explora com elegância os jogos de luz e sombra e com planos e contraplanos editados à maneira clássica pelo próprio Campanella, o enfrentamento entre o “velho” e o “novo” tem cenas de alta voltagem, como aquela em que Bárbara e Martín medem suas forças numa partida de sinuca. A naturalidade com que é usada a metalinguagem cinematográfica – os quatro artistas se referem constantemente ao cinema – é outro ponto forte de A grande dama do cinema.

 

Quando tudo parece estar perdido para o quarteto, eles ensaiam um grande ato final, em que cada um usa seus melhores talentos numa aplicação implacável (e surpreendente) da lei natural que a dupla diretor/roteirista mais gosta de observar no quintal da mansão _na cadeia alimentar, um bicho come outro.

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