Cannes – Desta vez, o protesto não ocorreu no tapete vermelho, mas, sim, no próprio filme. Há muito mais que sangue. Há grande carga política em Bacurau, filme do diretor Kleber Mendonça Filho que concorre à Palma de Ouro em Cannes, apresentado na noite de quarta-feira no festival. A história se passa num futuro muito próximo, na localidade sertaneja de Bacurau, que some do mapa. Os celulares param de funcionar, isolando os moradores. E surgem assassinos com carta branca para matar todo mundo. A produção brasileira e Dor e glória, de Pedro Almodóvar, são os únicos filmes ibero-americanos na competição oficial.
O terceiro longa de Mendonça, codirigido por Juliano Dornelles, entra na disputa três anos depois de Aquarius. Na época, o cineasta protagonizou ao lado do elenco um ato para denunciar “um golpe de Estado” contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Em 2018, como retaliação, a equipe recebeu notificação do governo do então presidente Michel Temer exigindo devolução do dinheiro investido. O mesmo ocorre agora com Bacurau. Os casos são avaliados por seus advogados.
“Neste ano não terá protesto” contra o presidente Jair Bolsonaro, disse Mendonça. “O filme é suficiente”. O roteiro, que começou a ser escrito há 10 anos, foi atropelado pela realidade. “Quando escrevemos, Trump não passava de uma piada. Então, foi eleito (...) Depois, Bolsonaro foi eleito. Qual impacto? O que estávamos fazendo acabou se tornando obsoleto diante dos eventos”, avaliou o diretor de 51 anos.
Para o portal norte-americano Indiewire, o filme mistura Os sete samurais (clássico japonês de Akira Kurosawa) com O albergue (terror de Eli Roth). Na avaliação da publicação, que deu uma nota B+, “Kleber Mendonça Filho retorna com um maravilhoso e delirante Western sobre os perigos da modernização desenfreada”. Já o inglês The Telegraph deu quatro de cinco estrelas e definiu o longa como “Um ensanguentado faroeste sci-fi com tons de John Carpenter”. Por outro lado, o The Hollywood Reporter foi mais rigoroso criticamente e disse que Bacurau é “visualmente impressionante, evocando propositalmente a gramática visual luxuosa dos clássicos filmes dos anos 70”, mas “apesar de bonito em estilo e admirável na ambição, este neowestern não é totalmente satisfatório”.
Bacurau, carregado de cenas truculentas e estética inspirada nos filmes de faroeste dos anos 1970, pode ser encarado como um tributo às comunidades do interior do Brasil, que nesta produção não se deixam intimidar pelo grupo de assassinos norte-americanos a serviço das autoridades locais.
“A diferença em relação aos westerns tradicionais é que os índios eram filmados de longe, só era possível ouvi-los gritar”, explicou Dornelles. “Em Bacurau, os índios são os louros com olhos azuis, mas nós nos aproximamos deles e os fizemos falar”. Filmado com lentes anamórficas usadas no cinema americano dos anos 1970, é nutrido por muitas referências, especialmente americanas, desde o cinema de Sam Peckinpah até o de John Carpenter, passando por John Boorman e Brian de Palma, com violência estilizada, gráfica.
Com a participação de Sônia Braga – protagonista de Aquarius, e do alemão Udo Kier –, Mendonça afirmou que esta produção serve “para suportar a loucura que está acontecendo” com Bolsonaro. Para Mendonça e Dornelles, bastante críticos a Bolsonaro, os brasileiros “devem realmente se unir” hoje “para resistir a certas coisas loucas”.
Dornelles reconheceu que o roteiro original tinha muito mais humor. Mas os acontecimentos no país acabaram convertendo o filme numa história “muito mais séria”. Mendonça acrescentou: “Por exemplo, o Rio agora vive um momento deprimente, a nível municipal, estadual e federal. As pessoas estão se mudando para Recife (cidade natal dele) como se fossem refugiados e os estamos acolhendo, porque, de alguma maneira, continuamos protegidos cultural e politicamente”.
E completa: “Penso que Bacurau é um pouco como isso. Era uma das ideias do filme”. Sobre a carga violenta, defende: “Acho que a violência vem da história”, afirmou Mendonça, que diz “não ter medo” de ‘falar’ sobre o Brasil. “Para nós, é muito fácil fazer filmes políticos”, afirmou.
POÇÃO MÁGICA
Apesar disso, os diretores se deixam levar atrás da câmara pelos caminhos da inventividade. Convertidos em resistentes, os habitantes de Bacurau contra-atacam a sangue frio graças a uma potente droga que os impede de sentir medo para ser tão sanguinários como seus agressores. “É como a poção mágica do Astérix!”, compara Dornelles.
Apoio aos estudantes
Kleber Mendonça Filho afirmou que “apoia totalmente” os protestos estudantis que levaram milhares às ruas na quarta-feira contra cortes na educação, dizendo que o Brasil parece uma “distopia em muitos aspectos” sob o governo Bolsonaro. “É muito importante em uma democracia se expressar quando você está insatisfeito”, insistiu. Para ele, a exibição de Bacurau ocorre “em um momento em que existe essa ideia geral de destruir a cultura no Brasil, a arte em geral”.
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“Neste ano não terá protesto” contra o presidente Jair Bolsonaro, disse Mendonça. “O filme é suficiente”. O roteiro, que começou a ser escrito há 10 anos, foi atropelado pela realidade. “Quando escrevemos, Trump não passava de uma piada. Então, foi eleito (...) Depois, Bolsonaro foi eleito. Qual impacto? O que estávamos fazendo acabou se tornando obsoleto diante dos eventos”, avaliou o diretor de 51 anos.
Para o portal norte-americano Indiewire, o filme mistura Os sete samurais (clássico japonês de Akira Kurosawa) com O albergue (terror de Eli Roth). Na avaliação da publicação, que deu uma nota B+, “Kleber Mendonça Filho retorna com um maravilhoso e delirante Western sobre os perigos da modernização desenfreada”. Já o inglês The Telegraph deu quatro de cinco estrelas e definiu o longa como “Um ensanguentado faroeste sci-fi com tons de John Carpenter”. Por outro lado, o The Hollywood Reporter foi mais rigoroso criticamente e disse que Bacurau é “visualmente impressionante, evocando propositalmente a gramática visual luxuosa dos clássicos filmes dos anos 70”, mas “apesar de bonito em estilo e admirável na ambição, este neowestern não é totalmente satisfatório”.
Bacurau, carregado de cenas truculentas e estética inspirada nos filmes de faroeste dos anos 1970, pode ser encarado como um tributo às comunidades do interior do Brasil, que nesta produção não se deixam intimidar pelo grupo de assassinos norte-americanos a serviço das autoridades locais.
“A diferença em relação aos westerns tradicionais é que os índios eram filmados de longe, só era possível ouvi-los gritar”, explicou Dornelles. “Em Bacurau, os índios são os louros com olhos azuis, mas nós nos aproximamos deles e os fizemos falar”. Filmado com lentes anamórficas usadas no cinema americano dos anos 1970, é nutrido por muitas referências, especialmente americanas, desde o cinema de Sam Peckinpah até o de John Carpenter, passando por John Boorman e Brian de Palma, com violência estilizada, gráfica.
Com a participação de Sônia Braga – protagonista de Aquarius, e do alemão Udo Kier –, Mendonça afirmou que esta produção serve “para suportar a loucura que está acontecendo” com Bolsonaro. Para Mendonça e Dornelles, bastante críticos a Bolsonaro, os brasileiros “devem realmente se unir” hoje “para resistir a certas coisas loucas”.
Dornelles reconheceu que o roteiro original tinha muito mais humor. Mas os acontecimentos no país acabaram convertendo o filme numa história “muito mais séria”. Mendonça acrescentou: “Por exemplo, o Rio agora vive um momento deprimente, a nível municipal, estadual e federal. As pessoas estão se mudando para Recife (cidade natal dele) como se fossem refugiados e os estamos acolhendo, porque, de alguma maneira, continuamos protegidos cultural e politicamente”.
E completa: “Penso que Bacurau é um pouco como isso. Era uma das ideias do filme”. Sobre a carga violenta, defende: “Acho que a violência vem da história”, afirmou Mendonça, que diz “não ter medo” de ‘falar’ sobre o Brasil. “Para nós, é muito fácil fazer filmes políticos”, afirmou.
POÇÃO MÁGICA
Apesar disso, os diretores se deixam levar atrás da câmara pelos caminhos da inventividade. Convertidos em resistentes, os habitantes de Bacurau contra-atacam a sangue frio graças a uma potente droga que os impede de sentir medo para ser tão sanguinários como seus agressores. “É como a poção mágica do Astérix!”, compara Dornelles.
Apoio aos estudantes
Kleber Mendonça Filho afirmou que “apoia totalmente” os protestos estudantis que levaram milhares às ruas na quarta-feira contra cortes na educação, dizendo que o Brasil parece uma “distopia em muitos aspectos” sob o governo Bolsonaro. “É muito importante em uma democracia se expressar quando você está insatisfeito”, insistiu. Para ele, a exibição de Bacurau ocorre “em um momento em que existe essa ideia geral de destruir a cultura no Brasil, a arte em geral”.