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“Há muito tempo eu queria fazer um filme que pudesse ser interpretado de mais de uma maneira. Não um filme interativo, mas uma proposta que abraça a interpretação de cada um. É uma tradução cinematográfica que pega o cinema ligado ao sonho, passa pelo Cão andaluz, do Buñuel, pelo expressionismo alemão e chega até David Lynch e Cronenberg. Em comum, há o questionamento da linguagem cinematográfica, na tentativa de fazer algo diferente”, afirma Daniel, que também dirigiu 'Não pare na pista' (2014).
A ideia começou a ganhar corpo quando o diretor e o roteirista estavam em Portugal, há alguns anos, e iniciaram as conversas, a partir de uma discussão sobre A estrada perdida, de David Lynch. Mantovani criou o roteiro original cujo resultado é uma história contada em parte pelos trechos de um romance que Alicia está escrevendo, em parte pelas percepções do protagonista, imerso numa crise de percepção da realidade.
É possível compreender, por exemplo, que Simão conheceu Catarina oferecendo a ela suas habilidades de sinestesia, por conseguir identificar cores quando ouve sons. Ela é cantora e criadora de jingles publicitários. Também fica claro que Alicia não superava o término do relacionamento com ele, bem como o adultério com Renée. Tudo isso aparece numa mistura complexa de tempos. No entanto, não fica tão evidente, por exemplo, como o fotógrafo se perturbou tanto depois do episódio de Jerusalém, mesmo que isso seja uma das chaves da história. Num segundo momento, uma estranha e misteriosa equipe de neurocientistas aparece com uma tecnologia experimental para registrar sonhos e encontra em Simão a cobaia perfeita.
REALIDADE Na mistura de ficção científica com thriller, o personagem tem que enfrentar perigos e lutar para salvar a própria vida e também a da esposa. Porém, não é possível nem para ele nem para quem assiste ao filme saber o que é realidade e o que é delírio. E é justamente esse o objetivo do diretor. “É um filme sobre a dificuldade de instaurar uma verdade. Em alguns momentos, a história se estabelece mais e o espectador se sente confortável, mas o filme anda em outra direção e é como se puxasse o tapete e o jogasse em outro lugar”, diz Daniel.
“Não é um filme que proporciona uma experiência fora do habitual só porque fizemos coisas muito loucas. Ele tem uma lógica racional na sua construção. Uma comparação que faço é com a música. Às vezes, temos dificuldades para traduzir em palavras uma música instrumental ou uma sinfonia, mas isso não nos impede de ter experiências muito intensas com elas. É isso que acontece em Albatroz”, afirma.
O título foi inspirado no nome de um hotel português. Na trama, Simão deve pegar um trem para ir até a (fictícia) cidade de Albatroz. “É uma palavra curta, forte, que começa com ‘a’ e termina com ‘z’, e ainda tem ‘atroz’ dentro. É ainda um pássaro muito tematizado na literatura. Tudo isso faz um conceito forte”, argumenta o diretor. Também não é possível saber em que continente Albatroz está. Com exceção de Jerusalém, não há nenhuma localidade real no filme.
“Para produzir o efeito de estranhamento que pretendemos, é necessário ter outro lugar. Sem referências, não é possível saber onde se está. Esse foi um dos grandes desafios da direção de arte”, comenta Daniel sobre o longa, que foi todo filmado no Brasil e selecionado para os festivais de Havana e Porto.
Ao longo dos 90 minutos de projeção, entram efeitos com cores e luzes, especialmente nas partes envolvendo o experimento onírico. Alguns deles bem intensos. Em uma sessão exclusiva para a imprensa no Rio de Janeiro, há algumas semanas, uma mulher passou mal, fazendo com que a produção alertasse para o fato de que o filme contém flashes que podem ser nocivos para portadores de epilepsia e outros distúrbios causados pela sensibilidade à luz.
O diretor, que se assume como “um artista plástico frustrado”, diz que, para ele, “é muito importante cuidar de cada frame e compô-lo como se fosse um quadro”. Ciente de que a trama pode soar complicada para uma boa parcela do público, ele diz: “Se eu pudesse dar uma recomendação a quem assiste ao filme, seria para que as pessoas estejam disponíveis. É uma experiência diferente da que estamos acostumados no cinema. Não que seja o primeiro filme assim, mas só quem tiver essa disponibilidade vai decifrar os segredos de Albatroz”.
No próximo dia 26, Daniel Augusto deve lançar um romance pela editora Nós chamado Nem o sol, nem a morte. Segundo ele, a temática é “bem delirante também”.