“O autor – seria um débil mental? – de nome Francisco Buarque de Hollanda criou uma peça que não respeita a formação moral do espectador, ferindo de modo contundente todos os princípios de ensinamento de moral e de religião herdados dos nossos antepassados.”
A passagem acima se refere ao parecer, de janeiro de 1968, que Mário F. Russomano enviou à chefe da censura federal de São Paulo. O censor havia assistido a uma apresentação do espetáculo Roda viva no Teatro Galpão, anexo ao Ruth Escobar, em São Paulo.
A narrativa, que acompanha a ascensão e queda do cantor popular Benedito Silva, foi a primeira incursão de Chico Buarque na dramaturgia. O parecer de Russomano foi apenas um prenúncio do que estava por vir. Em julho daquele ano, um grupo ligado ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o teatro paulistano, agrediu os artistas e depredou o cenário. Em setembro, a violência se repetiu durante temporada em Porto Alegre. Depois da truculência gaúcha, o espetáculo deixou de ser encenado.
Comédia musical, Roda viva – reencenada em 2018, em seu cinquentenário, em montagem atualizada pelo Teatro Oficina – se tornou um símbolo da luta contra a ditadura militar (1964-1985). E é esse o período revisto no documentário 'Tá rindo de quê? – Humor e ditadura', de Claudio Manoel (um dos Cassetas), Álvaro Campos e Alê Braga, que estreia nesta quinta (28), no Cine Belas Artes.
“Ele nasce da necessidade de se documentar a comédia no Brasil, que, muitas vezes, ainda é vista como uma arte menor. Hoje, temos muitos filmes sobre a história dos nossos músicos, nossos atores, mas poucos sobre os humoristas”, afirma Campos.
Tá rindo de quê? é o primeiro longa de uma trilogia assinada pelo trio, que pretende retratar o humor brasileiro até os dias atuais. O segundo filme, Rindo à toa – Humor sem limites, está pronto e deve chegar ao circuito comercial no fim deste semestre. O terceiro, que vai explorar principalmente o humor na era da internet, está em fase de produção.
Com rica pesquisa documental – fizeram consulta a pelo menos 20 arquivos, entre públicos e privados –, os realizadores acompanham a produção humorística por meio de imagens de programas e antigas entrevistas. Além disso, entrevistaram 22 profissionais: veteranos humoristas (Agildo Ribeiro, em longo e emocionado depoimento, concedido poucos meses antes de sua morte, em abril de 2018, Carlos Alberto de Nóbrega, Ary Toledo, Bemvindo Sequeira); atrizes (Alcione Mazzeo, Carmem Verônica, Regina Casé, Patricya Travassos, Fafy Siqueira); diretores e produtores (Daniel Filho, Boni); cartunistas (Jaguar, Chico Caruso); nomes da nova geração do humor (Bruno Mazzeo, Lúcio Mauro Filho).
ROTEIRO “(Primeiramente) Fizemos toda a pesquisa documental. A partir daí, ‘descobrimos’ o roteiro do filme”, diz Campos. Ainda que não faça divisões temporais, o longa busca seguir uma cronologia. A primeira parte, mais politizada, coloca ênfase na imprensa e em como ela sobreviveu ao golpe militar de 1964. Os destaques dessa primeira fase são a revista Pif-Paf, criada por Millôr Fernandes, e o histórico Pasquim.
Num momento posterior, o destaque vai para o teatro, sobretudo para a trajetória do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, que lançou Evandro Mesquita, Regina Casé e Luís Fernando Guimarães, entre outros. Mas boa parte da narrativa concentra-se na produção televisiva dedicada ao humor – do seriado Família Trapo aos Trapalhões, passando pelos programas de Chico Anysio e Jô Soares.
“Buscamos ser honestos com o tempo. Muito da comédia não lidava diretamente com a política. A questão é que a elite adora celebrar o Pasquim, porque se vê nele. Quisemos derrubar preconceitos, mostrar a turma que veio do rádio, que veio do povo. Havia programas que eram vistos por 60 milhões de pessoas a cada domingo”, comenta Campos.
Na parte inicial do filme, a participação de Jaguar traz momentos impagáveis. Como os diretores buscaram casar imagens históricas com depoimentos, há uma passagem que contrapõe a figura de Jaguar com a de Paulo Francis – os dois tiveram alguns entreveros, o maior deles quando Jaguar não quis publicar um livro do jornalista na editora Codecri, que dirigia, por não ter gostado do texto.
PASQUIM Em uma entrevista antiga, falando sobre o Pasquim, Francis cita os três nomes que considerava essenciais para o semanário criado em 1969: Ivan Lessa, Millôr e Jaguar. “Não gosto dele, mas é genial”, afirmou, um tanto a contragosto. Em depoimento atual, o cartunista relembrou momento em que os cabeças do Pasquim foram presos pela ditadura. Ele ficou sem tomar banho, com a barba enorme, quase irreconhecível. Francis, também detido, ficava, segundo Jaguar, agindo como se fosse um estrangeiro importante. “It looks like human (Parece humano)”, teria dito, fazendo troça com o cartunista.
O papel da mulher nos programas de humor dos anos 1970 e 1980 era ou o da gostosa ou o da feia engraçada, como recorda Fafy Siqueira. Regina Casé comenta que, no Asdrúbal, conseguia viver os dois estereótipos femininos.
Imagens de programas da época, como Os Trapalhões, ilustram essa situação. “Há muito machismo”, comenta Campos. Por outro lado, ele defende que a “generosidade” com que o quarteto capitaneado por Renato Aragão sempre tratou o Brasil “tem que ser mais celebrada do que as pisadas de bola da época”. Atrizes da pornochanchada, Alcione Mazzeo e Kate Lyra comentam a inocência da produção cinematográfica da época – os contratos de Alcione, por exemplo, proibiam toda cena de nudez.
Dos entrevistados, Campos comenta que somente Jô Soares e Renato Aragão não quiseram participar do longa – o primeiro, por problemas de saúde; o segundo, por não se sentir à vontade. O filme vai se aproximando do final com o início da abertura política. E é curioso ouvir de pessoas que foram perseguidas pela ditadura que o fim da censura lhes trouxe uma dor de cabeça. Jaguar e Chico Caruso lembram do vazio sentido por não ter que driblar censores. Tiveram que se reinventar.
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A narrativa, que acompanha a ascensão e queda do cantor popular Benedito Silva, foi a primeira incursão de Chico Buarque na dramaturgia. O parecer de Russomano foi apenas um prenúncio do que estava por vir. Em julho daquele ano, um grupo ligado ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o teatro paulistano, agrediu os artistas e depredou o cenário. Em setembro, a violência se repetiu durante temporada em Porto Alegre. Depois da truculência gaúcha, o espetáculo deixou de ser encenado.
Comédia musical, Roda viva – reencenada em 2018, em seu cinquentenário, em montagem atualizada pelo Teatro Oficina – se tornou um símbolo da luta contra a ditadura militar (1964-1985). E é esse o período revisto no documentário 'Tá rindo de quê? – Humor e ditadura', de Claudio Manoel (um dos Cassetas), Álvaro Campos e Alê Braga, que estreia nesta quinta (28), no Cine Belas Artes.
“Ele nasce da necessidade de se documentar a comédia no Brasil, que, muitas vezes, ainda é vista como uma arte menor. Hoje, temos muitos filmes sobre a história dos nossos músicos, nossos atores, mas poucos sobre os humoristas”, afirma Campos.
Tá rindo de quê? é o primeiro longa de uma trilogia assinada pelo trio, que pretende retratar o humor brasileiro até os dias atuais. O segundo filme, Rindo à toa – Humor sem limites, está pronto e deve chegar ao circuito comercial no fim deste semestre. O terceiro, que vai explorar principalmente o humor na era da internet, está em fase de produção.
Com rica pesquisa documental – fizeram consulta a pelo menos 20 arquivos, entre públicos e privados –, os realizadores acompanham a produção humorística por meio de imagens de programas e antigas entrevistas. Além disso, entrevistaram 22 profissionais: veteranos humoristas (Agildo Ribeiro, em longo e emocionado depoimento, concedido poucos meses antes de sua morte, em abril de 2018, Carlos Alberto de Nóbrega, Ary Toledo, Bemvindo Sequeira); atrizes (Alcione Mazzeo, Carmem Verônica, Regina Casé, Patricya Travassos, Fafy Siqueira); diretores e produtores (Daniel Filho, Boni); cartunistas (Jaguar, Chico Caruso); nomes da nova geração do humor (Bruno Mazzeo, Lúcio Mauro Filho).
ROTEIRO “(Primeiramente) Fizemos toda a pesquisa documental. A partir daí, ‘descobrimos’ o roteiro do filme”, diz Campos. Ainda que não faça divisões temporais, o longa busca seguir uma cronologia. A primeira parte, mais politizada, coloca ênfase na imprensa e em como ela sobreviveu ao golpe militar de 1964. Os destaques dessa primeira fase são a revista Pif-Paf, criada por Millôr Fernandes, e o histórico Pasquim.
Num momento posterior, o destaque vai para o teatro, sobretudo para a trajetória do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, que lançou Evandro Mesquita, Regina Casé e Luís Fernando Guimarães, entre outros. Mas boa parte da narrativa concentra-se na produção televisiva dedicada ao humor – do seriado Família Trapo aos Trapalhões, passando pelos programas de Chico Anysio e Jô Soares.
“Buscamos ser honestos com o tempo. Muito da comédia não lidava diretamente com a política. A questão é que a elite adora celebrar o Pasquim, porque se vê nele. Quisemos derrubar preconceitos, mostrar a turma que veio do rádio, que veio do povo. Havia programas que eram vistos por 60 milhões de pessoas a cada domingo”, comenta Campos.
Na parte inicial do filme, a participação de Jaguar traz momentos impagáveis. Como os diretores buscaram casar imagens históricas com depoimentos, há uma passagem que contrapõe a figura de Jaguar com a de Paulo Francis – os dois tiveram alguns entreveros, o maior deles quando Jaguar não quis publicar um livro do jornalista na editora Codecri, que dirigia, por não ter gostado do texto.
PASQUIM Em uma entrevista antiga, falando sobre o Pasquim, Francis cita os três nomes que considerava essenciais para o semanário criado em 1969: Ivan Lessa, Millôr e Jaguar. “Não gosto dele, mas é genial”, afirmou, um tanto a contragosto. Em depoimento atual, o cartunista relembrou momento em que os cabeças do Pasquim foram presos pela ditadura. Ele ficou sem tomar banho, com a barba enorme, quase irreconhecível. Francis, também detido, ficava, segundo Jaguar, agindo como se fosse um estrangeiro importante. “It looks like human (Parece humano)”, teria dito, fazendo troça com o cartunista.
O papel da mulher nos programas de humor dos anos 1970 e 1980 era ou o da gostosa ou o da feia engraçada, como recorda Fafy Siqueira. Regina Casé comenta que, no Asdrúbal, conseguia viver os dois estereótipos femininos.
Imagens de programas da época, como Os Trapalhões, ilustram essa situação. “Há muito machismo”, comenta Campos. Por outro lado, ele defende que a “generosidade” com que o quarteto capitaneado por Renato Aragão sempre tratou o Brasil “tem que ser mais celebrada do que as pisadas de bola da época”. Atrizes da pornochanchada, Alcione Mazzeo e Kate Lyra comentam a inocência da produção cinematográfica da época – os contratos de Alcione, por exemplo, proibiam toda cena de nudez.
Dos entrevistados, Campos comenta que somente Jô Soares e Renato Aragão não quiseram participar do longa – o primeiro, por problemas de saúde; o segundo, por não se sentir à vontade. O filme vai se aproximando do final com o início da abertura política. E é curioso ouvir de pessoas que foram perseguidas pela ditadura que o fim da censura lhes trouxe uma dor de cabeça. Jaguar e Chico Caruso lembram do vazio sentido por não ter que driblar censores. Tiveram que se reinventar.