O Oscar 2019 está recheado de bons filmes e grandes atuações, mas vem também envolto em polêmicas. A maior delas talvez seja a que envolve um curta-metragem. Detainment (Detenção), coprodução entre Irlanda e Reino Unido, um dos cinco indicados em sua categoria, é baseado na história real do assassinato de James Bulger, aos dois anos de idade, em 1993, em Liverpool (Nordeste da Inglaterra). Os assassinos eram dois meninos, que tinham na época apenas 10 anos de idade.
Assim que a indicação de Detainment foi anunciada, a mãe de James, Denise Fergus, que não havia sido informada pelo diretor Vicent Lambe a respeito da existência do filme, escreveu um desabafo emocionado e indignado numa rede social. “Não consigo expressar como estou enojada e chocada por esse filme ter sido feito e, agora, ser indicado ao Oscar. Uma coisa é fazer um filme como esse sem contatar ou pedir permissão à família de James. Outra é ter uma criança encenando as últimas horas de vida dele, os momentos que antecederam o seu assassinato brutal, e fazer a mim e a minha família reviver tudo isso!”, escreveu.
Denise Fergus e o marido, Ralph Bulger, pediram que o curta fosse retirado da lista de indicados da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood e que não seja distribuído. Uma petição on-line pela exclusão de Detainment da corrida pelo Oscar recebeu mais de 130 mil assinaturas nos primeiros dias após seu lançamento. Lisa Young, que lançou a iniciativa no site Change.org, afirmou que a Academia “absolutamente não deu ouvidos para a indignação e ignorou completamente essa petição”.
Em entrevista à emissora britânica ITV, a mãe de James disse que o diretor não merecia ser premiado com o Oscar e acusou-o de tentar promover sua carreira e se engrandecer usando o sofrimento de terceiros. O presidente da Irlanda, Michael D. Higgins, aparentemente apoiou o diretor, ao usar seu Twitter para parabenizar os indicados irlandeses, incluindo a equipe responsável por Detainment.
INSTIGANTE Documentarista, roteirista e produtor independente, Marcos Pimentel, que também é professor do departamento de documentários da Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños, em Cuba, afirma que não existe uma cartilha que determina o que pode e o que não pode nesse tipo de produção. “Por isso o documentário é tão instigante”, afirma.
Pimentel afirma que o gênero documental exige um exercício constante de negociação da equipe com a realidade que está sendo filmada, assim como impõe ao diretor muitas vezes um conflito ético entre seus valores e as exigências objetivas para retratar o objeto filmado. “O autor deve ter um processo de diálogo constante com seu repertório, seus valores, sua ética e sua consciência”, diz o documentarista. Sobre Detainment, ele diz: “Não sei se Academia vai retirá-lo da lista de indicados. Isso já aconteceu no passado. Esse filme não foi exibido no Brasil e, agora, nem sei se será”.
Depois que o protesto da família de James Bulger ganhou alcance mundial, Vincent Lambe falou sobre o assunto em entrevista à revista Variety. Ele defendeu seu filme e disse que não vai retirá-lo da corrida do Oscar. A cerimônia de premiação está marcada para o próximo dia 24, em Los Angeles. “Entendo que o filme, neste momento, esteja causando problemas para a família e isso é a coisa mais difícil com que tenho que lidar, porque tenho muita empatia por eles. Porém, acredito que seja um filme importante. Se o retirássemos do Oscar, todo o propósito de fazê-lo iria por água abaixo. Acho que é muito importante que as pessoas vejam o filme. Não é uma obra de entretenimento, mas se servir como um pequeno passo para uma mudança social, acredito que terá valido a pena”, afirmou.
Elogiado pela crítica, o curta foi premiado em sete diferentes festivais. Para refazer a história do crime, o diretor usa transcrições de entrevistas policiais com os assassinos e outros registros. Ele reencena o sequestro de James em um shopping de Liverpool e o interrogatório dos dois garotos que o atraíram para a morte. O cineasta irlandês reconheceu que esperava “uma certa dose de repercussão pública”, mas declarou estar “despreparado para as pessoas começarem a dizer coisas sobre o filme que são falsas”.
“Essa é a coisa mais difícil de contrapor agora, porque a maioria das pessoas que estão ouvindo essas coisas simplesmente não viram o filme e estão compreensivelmente indignadas. É importante que as pessoas entendam que não há detalhes gráficos no filme. Não há reconstrução do assassinato”, disse Lambe à Variety.
REGRA DO JOGO Marcos Pimentel, que soma 30 documentários no currículo, ressalta que a diferença entre ficção e documentário altera por completo a regra do jogo, pelo fato de os documentários lidarem com pessoas reais, não com personagens da ficção. “Isso muda tudo. Acho que deve haver essa preocupação do que o personagem vai sentir, como ele vai reagir diante da tela. Nesse caso específico, há uma família por trás que está lidando com um assunto doloroso. Longe de mim querer emitir qualquer juízo de valor, mas, a partir do momento em que o diretor quis construir uma história que tem muitos lados envolvidos, ele deveria procurar entender o que os pais da vítima estariam sentido, que não queriam reviver toda aquela tragédia”, analisa.
Grande parte das acusações que têm sido dirigidas a Detainment se concentra em dois elementos: no fato de o curta supostamente humanizar os responsáveis por um crime bárbaro e na decisão de Lambe de não informar a família de James sobre seu projeto. Ainda na entrevista à revista norte-americana, o diretor afirmou ter a intenção de se encontrar com os familiares de James para esclarecer por que decidiu fazer o filme e por que não entrou em contato anteriormente.
“É porque há mais de uma perspectiva sobre o caso e queríamos fazer um filme inteiramente factual. Não queríamos colocar uma opinião em relação a isso. Por essa razão, decidimos não nos reunir com nenhuma das famílias envolvidas e confiar apenas em transcrições de entrevistas e material factual”, explicou. O diretor confessou, no entanto, se arrepender de não ter avisado a família da vítima sobre o filme antes que ele se tornasse um assunto mundial, com a indicação ao Oscar.
Quanto à tese de que Detainment toma partido dos assassinos, ele diz que o filme “mostra que eles eram como dois garotos de 10 anos e seres humanos e, se as pessoas não podem aceitar o fato de que eles eram seres humanos, elas nunca vão começar a entender o que poderia ter levado esses garotos a cometer tal coisa”. O diretor afirmou que não ganhou dinheiro com o filme e disse achar que “ninguém da equipe pretende lucrar com isso”.
Entenda o caso
Em 1993, Jon Venables e Robert Thompson, então com 10 anos de idade, sequestraram, torturaram e mataram o pequeno James Bulger, de 2 anos, em Liverpool. O corpo do menino foi encontrado dois dias depois de seu desaparecimento, perto dos trilhos de um trem. O caso chocou o país. Em 2001, quando completaram 18 anos, os dois condenados foram postos em liberdade condicional, sob novas identidades, para evitar que sofressem represálias. Sabe-se que um deles voltou a ser detido, sob suspeita de posse de pornografia infantil. (Com a AFP)
Assim que a indicação de Detainment foi anunciada, a mãe de James, Denise Fergus, que não havia sido informada pelo diretor Vicent Lambe a respeito da existência do filme, escreveu um desabafo emocionado e indignado numa rede social. “Não consigo expressar como estou enojada e chocada por esse filme ter sido feito e, agora, ser indicado ao Oscar. Uma coisa é fazer um filme como esse sem contatar ou pedir permissão à família de James. Outra é ter uma criança encenando as últimas horas de vida dele, os momentos que antecederam o seu assassinato brutal, e fazer a mim e a minha família reviver tudo isso!”, escreveu.
Denise Fergus e o marido, Ralph Bulger, pediram que o curta fosse retirado da lista de indicados da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood e que não seja distribuído. Uma petição on-line pela exclusão de Detainment da corrida pelo Oscar recebeu mais de 130 mil assinaturas nos primeiros dias após seu lançamento. Lisa Young, que lançou a iniciativa no site Change.org, afirmou que a Academia “absolutamente não deu ouvidos para a indignação e ignorou completamente essa petição”.
Em entrevista à emissora britânica ITV, a mãe de James disse que o diretor não merecia ser premiado com o Oscar e acusou-o de tentar promover sua carreira e se engrandecer usando o sofrimento de terceiros. O presidente da Irlanda, Michael D. Higgins, aparentemente apoiou o diretor, ao usar seu Twitter para parabenizar os indicados irlandeses, incluindo a equipe responsável por Detainment.
INSTIGANTE Documentarista, roteirista e produtor independente, Marcos Pimentel, que também é professor do departamento de documentários da Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños, em Cuba, afirma que não existe uma cartilha que determina o que pode e o que não pode nesse tipo de produção. “Por isso o documentário é tão instigante”, afirma.
Pimentel afirma que o gênero documental exige um exercício constante de negociação da equipe com a realidade que está sendo filmada, assim como impõe ao diretor muitas vezes um conflito ético entre seus valores e as exigências objetivas para retratar o objeto filmado. “O autor deve ter um processo de diálogo constante com seu repertório, seus valores, sua ética e sua consciência”, diz o documentarista. Sobre Detainment, ele diz: “Não sei se Academia vai retirá-lo da lista de indicados. Isso já aconteceu no passado. Esse filme não foi exibido no Brasil e, agora, nem sei se será”.
Depois que o protesto da família de James Bulger ganhou alcance mundial, Vincent Lambe falou sobre o assunto em entrevista à revista Variety. Ele defendeu seu filme e disse que não vai retirá-lo da corrida do Oscar. A cerimônia de premiação está marcada para o próximo dia 24, em Los Angeles. “Entendo que o filme, neste momento, esteja causando problemas para a família e isso é a coisa mais difícil com que tenho que lidar, porque tenho muita empatia por eles. Porém, acredito que seja um filme importante. Se o retirássemos do Oscar, todo o propósito de fazê-lo iria por água abaixo. Acho que é muito importante que as pessoas vejam o filme. Não é uma obra de entretenimento, mas se servir como um pequeno passo para uma mudança social, acredito que terá valido a pena”, afirmou.
Elogiado pela crítica, o curta foi premiado em sete diferentes festivais. Para refazer a história do crime, o diretor usa transcrições de entrevistas policiais com os assassinos e outros registros. Ele reencena o sequestro de James em um shopping de Liverpool e o interrogatório dos dois garotos que o atraíram para a morte. O cineasta irlandês reconheceu que esperava “uma certa dose de repercussão pública”, mas declarou estar “despreparado para as pessoas começarem a dizer coisas sobre o filme que são falsas”.
“Essa é a coisa mais difícil de contrapor agora, porque a maioria das pessoas que estão ouvindo essas coisas simplesmente não viram o filme e estão compreensivelmente indignadas. É importante que as pessoas entendam que não há detalhes gráficos no filme. Não há reconstrução do assassinato”, disse Lambe à Variety.
REGRA DO JOGO Marcos Pimentel, que soma 30 documentários no currículo, ressalta que a diferença entre ficção e documentário altera por completo a regra do jogo, pelo fato de os documentários lidarem com pessoas reais, não com personagens da ficção. “Isso muda tudo. Acho que deve haver essa preocupação do que o personagem vai sentir, como ele vai reagir diante da tela. Nesse caso específico, há uma família por trás que está lidando com um assunto doloroso. Longe de mim querer emitir qualquer juízo de valor, mas, a partir do momento em que o diretor quis construir uma história que tem muitos lados envolvidos, ele deveria procurar entender o que os pais da vítima estariam sentido, que não queriam reviver toda aquela tragédia”, analisa.
Grande parte das acusações que têm sido dirigidas a Detainment se concentra em dois elementos: no fato de o curta supostamente humanizar os responsáveis por um crime bárbaro e na decisão de Lambe de não informar a família de James sobre seu projeto. Ainda na entrevista à revista norte-americana, o diretor afirmou ter a intenção de se encontrar com os familiares de James para esclarecer por que decidiu fazer o filme e por que não entrou em contato anteriormente.
“É porque há mais de uma perspectiva sobre o caso e queríamos fazer um filme inteiramente factual. Não queríamos colocar uma opinião em relação a isso. Por essa razão, decidimos não nos reunir com nenhuma das famílias envolvidas e confiar apenas em transcrições de entrevistas e material factual”, explicou. O diretor confessou, no entanto, se arrepender de não ter avisado a família da vítima sobre o filme antes que ele se tornasse um assunto mundial, com a indicação ao Oscar.
Quanto à tese de que Detainment toma partido dos assassinos, ele diz que o filme “mostra que eles eram como dois garotos de 10 anos e seres humanos e, se as pessoas não podem aceitar o fato de que eles eram seres humanos, elas nunca vão começar a entender o que poderia ter levado esses garotos a cometer tal coisa”. O diretor afirmou que não ganhou dinheiro com o filme e disse achar que “ninguém da equipe pretende lucrar com isso”.
Entenda o caso
Em 1993, Jon Venables e Robert Thompson, então com 10 anos de idade, sequestraram, torturaram e mataram o pequeno James Bulger, de 2 anos, em Liverpool. O corpo do menino foi encontrado dois dias depois de seu desaparecimento, perto dos trilhos de um trem. O caso chocou o país. Em 2001, quando completaram 18 anos, os dois condenados foram postos em liberdade condicional, sob novas identidades, para evitar que sofressem represálias. Sabe-se que um deles voltou a ser detido, sob suspeita de posse de pornografia infantil. (Com a AFP)