Longa faz uma densa reflexão sobre os caminhos do desejo

Filme conta a história de uma mulher abandonada por seu primeiro amor que volta a se apaixonar por um homem fisicamente idêntico ao ex

por AFP 30/12/2018 09:00
Zeta Filmes/Divulgação
Os atores Erika Karata e Masashiro Higashide em cena do longa japonês Asako 1 & 2, em cartaz no Cine Belas Artes (foto: Zeta Filmes/Divulgação)

Com a história de uma mulher abandonada por seu primeiro amor que volta a se apaixonar por um homem fisicamente idêntico ao ex, longa de Ryusuke Hamaguchi faz uma densa reflexão sobre os caminhos do desejo

Em cartaz no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, Asako I e II, do direretor japonês Ryusuke Hamaguchi, fornece, numa duração padrão (119 minutos), o que se pode definir como dois em um. Dois filmes. A primeira vida de Asako, em Osaka, inclui a descoberta do amor e a união com Baku. Conhecem-se e, imediatamente, já estão apaixonados, como se fossem almas gêmeas. Uma amiga a adverte de que aquilo não é natural e não vai terminar bem, mas Asako não liga. Antes tivesse ligado. Baku, do nada, diz que vai ali e já volta, e some. Traumatizada, Asako vai para Tóquio viver sua segunda vida.

Novo trabalho, novo amor, com um clone perfeito do primeiro companheiro. No princípio, o que a atrai é a semelhança física, e Ryohei se surpreende com a intensidade da aproximação de Asako, que não lhe fala desse primeiro amor nem do quanto são parecidos. Unem-se, de novo tudo parece perfeito, mas a garota descobre que Baku se transformou numa celebridade.

Ele volta à vida dela, desestabiliza o que estava aparentemente reestruturado. O segundo casamento implode, as coisas não vão bem no rearranjo do primeiro. E tem ainda uma gata que some – seria uma referência à Crônica do pássaro de corda, do escritor Haruki Murakami?

Hamaguchi se tornou conhecido no Ocidente com um filme de cinco horas, Happy hour, no qual a vida de um grupo é vista segundo diferentes pontos de vista. Se não muda totalmente o ponto de vista, as mudanças na vida de Asako são suficientemente fortes para compor dois relatos temporais e espaciais. O tempo da juventude e o da maturidade. O da euforia e o da desesperança. O do desencontro e o do reencontro. Hamaguchi parece trabalhar com códigos tradicionais, mas, na verdade, ele está sempre colocando em xeque, e subvertendo, esses códigos. É um observador arguto do comportamento humano – da alma humana. Quem é essa Asako, quem são seus homens? O que representa essa dupla face de um mesmo homem? E o amor, o que é?

Asako ama Ryohei ou usa-o para superar a frustração passada? Não resta dúvida de que vários indícios apontam que ela continua obcecada por Baku, e por isso a volta dele tem esse impacto – na vida de Asako e no relato. Existem filmes que parecem simples, mas não são, e Asako I e II é um deles.

No Festival de Cannes, Assunto de família, de Hirokazu Kore-eda, acabou levando a Palma de Ouro do júri presidido por Cate Blanchett. Por mais qualidades que tenha o longa de Kore-eda, Cannes premiou o japonês errado. No festival, em maio, as conversas entre jornalistas apontavam sempre para as mesmas conclusões.

Nouvelle vague


Hamaguchi é um cineasta na tradição da nouvelle vague, o movimento que revolucionou o cinema francês – e mundial – na segunda metade dos anos 1960. Como o sul-coreano Hong Sang-Soo, Hamaguchi é cria de Eric Rohmer. Seu cinema é dialogado, moral e os acasos – do destino e da existência – tumultuam as vidas de seus personagens. No caso específico de Asako I e II, é como se Rohmer estivesse (re)fazendo a sua particular versão do genial Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock.

Só para lembrar, no filme do mestre do suspense, James Stewart, como Scottie, apaixona-se por uma mulher que deve seguir. Ela se mata, ou assim parece, e ele cai na depressão. Ao descobrir outra mulher muito parecida, ele esculpe, nessa outra, a anterior. Faz com que ela volte de “entre os mortos”. No final, descobre-se que era tudo um plano de assassinato, no qual Scottie foi envolvido para encobrir o crime. Hamaguchi não chega a tanto, mas sua inversão de gênero – uma mulher no lugar de James Stewart, a admirável Erika Karata – faz com que Asako seja vítima de si mesma, no duplo envolvimento com os personagens de Masashiro Higashide (Baku e Ryohei).

Em Cannes, a questão chegou a ser levantada na entrevista coletiva pós-exibição de Asako I e II, da mesma forma que o tema que atravessa a obra – o verdadeiro amor. Nesse sentido, Asako tem algo da Bathsheba Everdene criada pelo escritor inglês Thomas Hardy em seu clássico Longe deste insensato mundo, obra filmada por John Schlesinger, nos anos 1960, e por Thomas Vinterberg, em 2015. Bathsheba casa-se com um homem e é atraída por outro, até descobrir que o verdadeiro amor sempre esteve ao seu lado, representado por um terceiro sujeito.

Baku ou Ryohei? E, por que, numa era de afirmação de heroínas feministas, Asako precisaria desses homens para se afirmar? Numa cena que evoca o terremoto de 2011, as pessoas são separadas no caos e sua eventual reunião equivale a uma revelação – em épocas de dificuldades, todos precisamos de apoio. Mas o filme se encerra por uma nota mais ambígua. Um, o outro, ou os dois? Hamaguchi filma as águas que não param de fluir no canal – a vida que vem, os sentimentos. Um grande filme.

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