Maria Callas passeia por sua nova casa, na costa italiana. Em volta da piscina, diverte-se com um cachorrinho e caminha pelo jardim enquanto sua voz, em off, fala sobre seus hábitos fora do palco. Ela diz que gosta especialmente de ver TV. E que tem um hobby “ridículo”: apesar de não saber cozinhar, gosta de colecionar receitas. “Você consegue imaginar? Justo eu, a tragédia em pessoa.”
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A tragédia em pessoa. Callas interpretou no palco mulheres atormentadas por amores frustrados, subjugadas pelo mundo em que viviam. Na vida real, viveu em conflito com a família, passou por um divórcio rumoroso, envolveu-se com Aristóteles Onassis – e soube pela imprensa de seu casamento com Jaqueline Kennedy.
“Ouvi uma gravação de Callas pela primeira vez há seis anos. Foi uma revelação profunda. E naturalmente quis entender o fascínio que ela provocava”, conta o diretor. Para tanto, em meio a muitas versões e muitos rumores, ele se propôs a resgatar a voz da mulher por trás da cantora. Mas como, se ela própria afirma no documentário que “as suas memórias estão nas personagens que interpretou”?
Ao se propor a construir um retrato em primeira pessoa da soprano Maria Callas (1923-1977), Tom Volf se deparou com uma mulher constantemente em conflito. “Callas está sempre brigando com Maria, e Maria com Callas, em uma busca por uma harmonia que ela não vai conseguir encontrar”, afirma o diretor.
Callas revolucionou a interpretação na ópera. “A ópera pode ser entediante”, ela diz. E o único antídoto é o poder de atuação de um cantor que se entende não apenas como uma voz, mas também como um ator, uma atriz, capaz de dar sentido aos dramas que interpreta. São poucos os vídeos disponíveis dela no palco, mas a voz, preservada em dezenas de CDs, não deixa dúvidas a respeito da intensidade das interpretações, de um sentido de urgência capaz de nos aproximar das personagens que ela vivia.
“Para ela, tratava-se sempre da integridade artística, do respeito ao compositor e ao público”, diz Volf. “Há algo muito autêntico em suas entrevistas e também nas cartas que envia aos amigos, em que se abre totalmente. Na verdade, ela é sempre honesta, mesmo quando lhe perguntam sobre sua vida íntima. E é essa mesma honestidade que fez de suas interpretações experiências tão marcantes.”
DUALIDADES Ainda assim, a soprano nutria dúvidas a respeito da própria carreira. São questionamentos que remontam à infância. Foi a mãe quem resolveu fazer dela uma estrela. Não por caso, Volf constrói, com imagens, o retrato de uma mulher que é sempre levada pelos outros. Quando Callas sai de um teatro após apresentação, quando desembarca em um aeroporto, está sempre rodeada de câmeras, jornalistas, público. É carregada por pequenas multidões. Ela parece assustada. Pede que não a empurrem. Em entrevistas, repórteres perguntam sem a menor cerimônia sobre detalhes íntimos de sua vida. Ela responde como pode. Eles insistem.
Na narrativa de Volf, Callas vê a própria carreira ser sequestrada por aqueles que estão à sua volta. Quando se separa de Giovanni Battista Meneghini, seu marido e empresário, conta que ele cometeu o erro que ela sempre evitou: deslumbrou-se com a imagem da grande estrela, com a celebridade conquistada.
Em meio a tudo isso, a soprano expressa várias vezes um desejo de liberdade. “É algo que chama muito a atenção, uma dualidade entre a profissão e o desejo de ter uma vida que ela chama de normal”, anota Volf. Callas chega a afirmar que o caminho natural para uma mulher é se casar, ter filhos, cuidar do marido – um caminho que lhe foi roubado.
Maria Callas – Em suas próprias palavras
• Direção: Tom Volf
• Belas 1, 16h30, 21h30