O primeiro filme de Orson Welles (1915-1985), Cidadão Kane (1941), é construído em torno do misterioso significado de uma palavra, rosebud, pronunciada pelo protagonista ao morrer. No desfecho, as coisas se aclaram um pouco, ao menos para o espectador, já que os personagens permanecem imersos na ignorância sobre o sentido do termo. Já o último filme de Welles, O outro lado do vento (The other side of the wind) – filmado nos anos 1970 e apenas agora concluído – não oferece sequer uma solução parcial como consolo. Radical, construído sobre impasses, permanece misterioso do princípio ao fim. Já pode ser visto na Netflix, que participou da viabilização de uma obra que, acreditava-se, jamais viria à luz
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Seu primeiro filme, Cidadão Kane, cujo protagonista é inspirado no magnata da imprensa William Randolph Hearst, valeu-lhe a fama de gênio. Durante décadas, Kane foi considerado pela crítica o maior filme de todos os tempos, até ser substituído no pódio, pela mudança de gosto geracional, por Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock.
Mas Kane também foi um estigma para Welles, que tinha apenas 25 anos quando o realizou. Não à toa, diz em seu livro de entrevistas a Peter Bogdanovich (cineasta, autor de A última sessão de cinema e Lua de papel), que foi a vida toda perseguido por seu precoce sucesso de juventude. A cada obra, pediam-lhe um novo Kane. Welles estava no Brasil, filmando o inconcluso It´s all true (montado postumamente) quando os produtores impuseram cortes severos ao seu segundo longa, Soberba, desfigurando-o por completo, segundo o diretor.
A partir de então, a carreira foi errática em termos comerciais. Welles passou a viver e a filmar na Europa, mais receptiva a seus projetos.
O outro lado do vento é um caso especial entre esses filmes, pois tinha praticamente todo o material rodado, apesar dos percalços. Não se concluía por um enrosco comercial com produtores. Pode ser considerado como um acerto de contas de Welles com Hollywood. Em especial com a chamada “nova Hollywood”, primavera criativa dos estúdios que revelou cineastas como Francis Ford Copolla, Paul Mazursky, Peter Bogdanovich e Arthur Penn, entre outros. Como todas as primaveras, esta também teve prazo de validade curto e terminou quando filmes como Tubarão (1975) e Guerra nas estrelas (1977) reconduziram os estúdios ao porto seguro dos blockbusters destinados a meninos crescidos – em que se encontra até hoje.
O ajuste de contas em O outro lado do vento o se dá de forma dupla Na verdade, são dois filmes em um. No primeiro, o falso documentário em que um veterano do cinema, Jake Hannaford (John Huston), é recebido na casa de uma amiga Zarah Valeska (Lili Palmer) para celebrar o aniversário. E também para mostrar as provas de seu último trabalho – justamente O outro lado do vento. Há então no filme esse documentário sobre uma festa caótica, e o “filme dentro do filme”, mostrado aos convivas em um drive-in.
Neste último, brilha na tela a então mulher de Welles, a atriz e modelo croata Oja Kodar, no papel de uma devoradora de homens. Há uma longa cena de sexo (sete minutos) no interior de um carro e sob chuva que é uma das sequências mais eróticas e bem filmadas já vistas no cinema.
No falso documentário, Jake Hannaford (Huston) convive com uma conflitiva figura filial, Brooks Otterlake, interpretado por Peter Bogdanovich, que na vida real, durante algum tempo, manteve com Welles uma relação de admiração e respeito mútuos. Depois brigaram. Outras figuras se insinuam, como a atriz Mercedes McCambridge (de Johnny Guitar) e Dennis Hopper (de Easy Rider). Além da crítica de cinema Julie Rich (Susan Strasberg), cujo modelo óbvio é a mitológica Pauline Kael, da revista New Yorker.
Pauline se tornou desafeta de Welles ao escrever o ensaio “Raising Kane” (“Criando Kane”) no qual considera o roteirista Herman Mankiewicz o principal responsável por Cidadão Kane. Enfim, é o mundo da velha e da nova Hollywood fervilhando nessa festa terminal..