Foram vários cineastas que tomaram o circo como representação metafórica da grandeza e da miséria humanas. O tema já seduziu autores como Ingmar Bergman (Noites de circo), Charles Chaplin (O circo), Cecil B. de Mille (O maior espetáculo da Terra), Max Ophüls (Lola Montès) etc. Agora, o brasileiro Cacá Diegues apresenta O Grande Circo Místico, que estreou esta semana em todo o Brasil.
saiba mais
O filme é inspirado na obra de Jorge de Lima, cuja alcunha de “poeta” se deve ao fato de que metade de sua obra literária é constituída de poemas e sonetos. Mas Jorge de Lima escreveu também romances, a par do seu complexo A invenção de Orfeu, poema que, pela diversidade de formas e ritmos, desafia classificações. A admiração de Cacá pelo escritor é antiga, produto de uma vida inteira, por parte de Cacá. Há 12 anos, ele havia realizado seu último filme como diretor, O maior amor do mundo. Não se manteve inativo. Produziu muito, pensando no que gostaria de fazer.
Voltou a Jorge de Lima. Escolheu O Grande Circo Místico, um pouco por causa do espetáculo com música de Chico Buarque e Edu Lobo – que não viu, mas a trilha o acompanha sempre. “O poema conta a história de uma família ao longo de 100 anos. Fulano e fulana casaram-se, tiveram tal filho, que conheceu não sei quem, tiveram um filho ou filha, que se casou com... E assim vai até o desfecho com as duas garotas no trapézio.”
Halley Com o roteirista George Moura, a grande dificuldade foi criar uma estrutura narrativa para preencher esse século. “Usamos a passagem do Cometa Halley pelo Brasil e criamos o meneur du jeu, o apresentador do circo, Celavie, interpretado por Jesuíta Barbosa.”
O filme já esteve no Festival de Cannes (fora de concurso), abriu Gramado e encerrou o Festival do Rio, no fim de semana. É o candidato do Brasil para concorrer a uma vaga no Oscar. Cacá, que já ganhou na Academia Brasileira de Letras, agora tem de vencer na de cinema, de Hollywood. A disputa será pesada, com candidatos de peso. Alemanha (Never look away, de Florian Henckel von Donnersmarck), Argentina (O anjo, de Luís Ortega), Coreia do Sul (Em chamas, de Lee Chang-dong), Itália (Dogman, de Matteo Garrone), Líbano (Cafarnaum, de Nadine Labaki), México (Roma, de Alfonso Cuarón), Polônia (Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski), Turquia (A árvore dos frutos selvagens, de Nuri Bilge Ceylan) etc.
No total, são 87 países disputando as cinco vagas – uma lista de nove pré-indicados pela Academia será divulgada no começo do ano. Os cinco definitivos somente em 22 de janeiro de 2019, com todos os demais indicados. A premiação ocorrerá um mês depois, em 24 de janeiro. Cacá está feliz por estar nessa corrida mais uma vez.
desabafo É o primeiro a fazer o que pode parecer uma autocrítica, mas talvez seja só um desabafo. “É meu filme mais megalômano, nunca mais quero repetir a experiência.” Aos problemas de um filme grande, somaram-se outros, de ordem mais pessoal. Sua filha ficou doente – já está bem, mas ele não quer falar sobre isso – e a produção parou. Quando retornou, houve outro pesadelo. O efeito final – as garotas nuas soltas no ar –, por acordo de coprodução, foi feito na França. Revelou-se mais complicado do que parecia. Teve de ser refeito.
Cacá está vivíssimo, e já sonhando com o próximo filme – A dama, uma história que volta à herança da ditadura militar. Pessoas que integraram a luta armada foram presas e exiladas, e são reunidas numa casa. Por que, por quem? Um acerto de contas? “Com certeza”, e mais Cacá não antecipa, um pouco por causa do spoiler e também porque é um filme de atores, e ele ainda está montando o elenco. Por enquanto, só O Grande Circo Místico. “Senhoras e senhores”, anuncia Celavie, “o espetáculo vai começar”. Cacá colocou muita energia nesse projeto. Sabe que o ano está sendo difícil para o cinema brasileiro, mas não perde a esperança de uma boa acolhida.
E não perde a esperança no Brasil. Cacá pertence a uma geração, a do Cinema Novo, que acreditava no cinema como instrumento de transformação e lutou para colocar o povo na tela. Está apreensivo pelo futuro do país, ainda tentando entender como tanta gente quis dar esse salto no escuro com o presidente eleito. Mas não gosta desse movimento “vamos resistir”. “A gente resiste ao autoritarismo, à violência. Pode-se discutir muita coisa do processo, mas ele foi eleito. Temos de respeitar o resultado das urnas. Resistir é coisa para o futuro, dependendo do que vier.” (Estadão Conteúdo)
Entrevista
Cacá Diegues,
cineasta
‘O cinema não é a realidade’
O Grande Circo Místico é o sétimo filme de Cacá Diegues a tentar a indicação para o Oscar desde Xica da Silva, em 1977. Tentaram, depois, Bye-bye Brasil, Um trem para as estrelas, Dias melhores virão, Tieta do Agreste e Orfeu.
Como você recebeu a pré-indicação pelo Brasil?
O Grande Circo Místico foi selecionado por uma comissão da Academia Brasileira de Cinema, nomeada pelo MinC. Essa escolha me honra e me faz feliz, pois tenho certeza de que vivemos um momento excepcional no cinema brasileiro, talvez o período mais rico quantitativa e qualitativamente de nosso cinema, com a diversidade que nunca tivemos antes, diversidade regional, geracional, política, estética, cinematográfica etc., com uma nova geração de cineastas fazendo filmes excelentes.
Qual vai ser a estratégia para seduzir a Academia?
No fim de novembro, vou a Los Angeles para mostrar o filme e conversar com a imprensa e os eleitores do Oscar. Não temos recursos para grandes campanhas, como outros filmes de outros países, que, além de festas e coquetéis, promovem eventos extraordinários para lançá-los na competição. Vamos apenas confiando na qualidade do filme.
Sua expectativa é alta?
É justa. Não podemos transformar o Oscar no juiz supremo de nossos filmes. Se ganharmos alguma coisa, tanto melhor para a promoção do cinema brasileiro. Ele será falado durante pelo menos mais um ano, até o próximo Oscar. Mas não é o Oscar e seus eleitores que decidem se um filme brasileiro é bom ou ruim, não iremos a Los Angeles para isso. O juiz supremo de nossos filmes somos nós mesmos, os espectadores brasileiros.
Você trabalha, no Circo Místico, com um elenco que, além de extenso, é internacional. Como foi reunir essa turma, e dirigi-la?
Já dirigi Jeanne Moreau, que talvez tenha sido a maior ícone do cinema autoral e ela foi excepcional em Joanna Francesa. Ficamos amigos. Queria ter aqui Isabelle Huppert, mas o filme atrasou e ela não teve data. Terminei escolhendo a Catherine Mouchet, de um filme mítico, Thérèse. Todo o mundo se empenhou muito. A Mariana Ximenes passou meses treinando o trapézio para dispensar dublê. O mais importante é que todo o elenco deu o tipo de interpretação não naturalista que eu sempre quero. O cinema não é a realidade. É uma janela, uma representação dela. Podem falar o que quiserem do meu filme, menos do elenco. (Estadão Conteúdo)