Enquanto tentava lidar com o que a ausência dela lhe causava perambulando pelo país asiático que mais reverencia a música brasileira, Fischer ouviu João Gilberto pela primeira vez. Girando na vitrola sem parar, o pai da bossa nova sussurrava uma promessa em forma de canção: “Quem ouvir o oh-ba-lá-lá/ terá feliz o coração/O amor encontrará/ ouvindo esta canção/ Alguém compreenderá seu coração”. Fischer decidiu que precisava ouvir isso de João cara a cara e embarcou para o Brasil.
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Com um ouvido privilegiado assim como o do alemão – e que igualmente se deixou seduzir pela música brasileira –, o cineasta franco-suíço Georges Gachot não chegou a conhecer Fischer, mas se encantou por seu livro e o transformou no filme Onde está você, João Gilberto?, que estreia nesta quinta (23) nos cinemas brasileiros (em Belo Horizonte, tem sessões às 14h20 e às 18h50 no Ponteio 4).
Ao refazer os passos de Fischer no Brasil, Gachot constrói um documentário em que a saudade é o ponto de partida e de chegada. O diretor empreende duas buscas (irrealizáveis) numa só – ele quer encontrar João Gilberto e quer, com isso, dar um final diferente à história de Fischer.
Como se trata de um ensaio sobre a ausência, há um tom de melancolia que não sai do filme, não sai, não sai. Mas há também momentos divertidos, como aquele em que Marcos Valle conta como foi seu único diálogo – telefônico – com João Gilberto, e outros tocantes, quando, por exemplo, João Donato remonta aos seus 19 anos e narra como ele e JG criaram a canção que diz “minha saudade é a saudade de você que não quis tirar de mim a saudade de você”. Nessa época, João Donato e João Gilberto eram como “corda e caçamba”. Agora, já levam 15 anos rompidos, por razões que Donato diz não compreender bem. O que imagina é que o afastamento provoque em João o mesmo que nele: saudades.
Como João de fato se sente, nem Gachot nem seu filme nem ninguém parecem conseguir responder. Na conversa ao lado, o diretor fala sobre como é esse negócio de viver assim se perguntando Onde está você, João Gilberto?
Por que decidiu fazer um documentário sobre a busca por dois personagens sabidamente inacessíveis – o irremediavelmente recluso João Gilberto e Marc Fischer, já falecido?
O livro (de Fischer) me tocou muito, porque a história dele é muito parecida com a minha história. O amor que ele tinha pela música brasileira é muito parecido com minha sensibilidade pela música brasileira. De repente, descobri que ele morreu. Tive a ideia de fazer um filme para completar a pesquisa dele até o ponto que não aconteceu – a ideia de que o João Gilberto iria tocar Oh-ba-la-lá para ele. Foi complicado começar a escrever o roteiro, que é quase um roteiro de ficção. Escrevi um roteiro bem escrito com 43 cenas, como num roteiro de ficção.
Embora o roteiro tenha sido muito planejado e refazia passos conhecidos e documentados em livro, algo chegou a lhe surpreender durante as filmagens?
A cena em que Marcos Valle assiste ao Fischer eu preparei bem antes. Mas a reação dele a esse momento é bem forte. Também a presença da Watson (a intérprete Rachel Balassiano); ela me falava muitas vezes que fazer o filme foi como uma terapia para ela. Mas essa situação de andar nos mesmos caminhos de Fischer, o homem que morreu, foi muito complicada. Em muitos lugares não me senti bem, dentro do banheiro (em Diamantina, onde João Gilberto tocava violão e criou a batida característica da bossa nova), por exemplo. Deu-me um sentimento de medo, medo de entrar na vida dele e acontecer a mesma coisa para mim que aconteceu para ele (Fischer), depressão e saudade. Foi difícil. Na edição do filme, imaginei que o Marc pudesse escrever um capítulo sobre nós dois. Foi quase um jogo, uma brincadeira, mas uma brincadeira verdadeira.
Tenho a impressão de que a “brincadeira verdadeira” aparece também no fato de o documentário assumir o tom de ‘filme de fã detetive’, com a consequência de inspirar no espectador a desconfiança e a suspeita e dar a determinados entrevistados a característica de personagem de fundo falso. É o caso, por exemplo, quando Miúcha diz que a pessoa do outro lado da linha é João Gilberto ou quando Otávio Terceiro negocia com você o encontro com João. O grau de desconfiança que essas cenas inspiram também foi meticulosamente planejado no roteiro?
Marc tinha dúvidas sobre o que o Otávio Terceiro dizia. Comecei a fazer esse jogo também. Aquilo que Miúcha diz ao lado do João Donato sobre João estar chegando pode ser ficção. É um jogo que jogamos. No táxi, com Otávio, essa cena é verdadeira. Sinto a emoção de ir andando para ouvir João Gilberto tocar, nem que seja atrás da porta. Acho que me identifiquei às vezes demais com a vida do Marc Fischer. O filme é isso.
Em todo o filme você faz um único comentário sobre a particularidade dos brasileiros, no caso, a impontualidade, dizendo que “o tempo no Brasil nunca é em cima da batida, ou é um pouco antes ou um pouco depois”. E você escolhe fazer esse comentário durante sua visita a Diamantina. Por quê?
Tenho uma teoria de que a particularidade do João Gilberto é a maneira de cantar, que é muito livre, como se ele voasse – melodia, ritmo e harmonia nunca estão juntos. Essa é a magia da maneira do João Gilberto tocar a bossa nova, que ele inventou. Por isso ele nunca se repete. Você pode ouvir muitas interpretações da mesma canção e cada vez será diferente. As letras ele sempre entra um pouco antes ou um pouco depois. Diamantina é um bom lugar para explicar isso. Nesse momento, há um carro que você vê, enquanto vai andando pela rua. Acho que talvez tenha sido um bom lugar para falar sobre essa ideia teórica.
O lançamento do documentário coincide com um momento tão turbulento na vida familiar de João Gilberto que a expressão “tristeza não tem fim” tem sido a mais comumente usada para descrevê-lo. Como lida com esse aspecto?
Miúcha me falou que o filme é bom para ele, para trazer de novo a força da música dele. Acho que o filme é minha resposta para essa situação, que é bem complicada. Espero que um dia ele assista ao filme, que ele goste e entenda. Essa situação confusa ninguém sabe se é verdadeira ou não é. Espero que ele não esteja muito triste. Talvez ele esteja... Não sei. Acho que o pior que pode acontecer a um artista é não poder mais fazer sua arte. Miúcha me disse que ele não para de tocar.
Os pais de Marc Fischer confiaram a você todas as fotografias e arquivos que o filho produziu no Brasil. Você mostrou o filme a eles antes da estreia?
Sim, quando o filme foi finalizado fui apresentá-lo para os pais de Marc. Pais que perderam um filho querem saber o porquê, se as pessoas tinham uma boa lembrança dele. Os pais estão muito contentes porque a literatura, o livro do Marc, vai reviver mais forte (com o lançamento do filme). Foi difícil essa apresentação para os pais, em dezembro do ano passado. Foram grandes emoções. A mãe comentou depois que talvez ela nunca tenha entendido o que se passou dentro da cabeça de seu filho, por que ele cometeu esse ato de se matar. Dentro do livro tem alguns momentos que sugerem isso. Mas escrever é uma coisa; fazer é outra. Com esse filme, tento dar um presente para o Marc e para o público, que é ouvir o João tocando Oh-ba-la-lá.