Cinema produzido por mulheres é tema do festival Imagem dos Povos

Pela primeira vez, programação do evento se dedica ao cinema feminino. A pioneira Alice Guy-Blaché terá 33 obras exibidas

por Márcia Maria Cruz 29/05/2018 08:24
Imagem dos Povos/Divulgação
O japonês 'Esplendor', dirigido por Naomi Kawase, será exibido com legenda descritiva e audiodescrição. (foto: Imagem dos Povos/Divulgação)

Boa parte da contribuição das mulheres para o desenvolvimento da sétima arte foi apagada e, a despeito das sincronicidades na criação, não receberam o devido reconhecimento. Essa lacuna na história do cinema feminino é o foco desta edição do festival Imagem dos povos – Mulheres. Com o slogan “seja como mulheres, faça história”, a mostra tem início nesta terça (29) e segue até 3 de junho no Sesc Palladium. Neste ano, ao celebrar a contribuição feminina, a programação apresenta artistas como a francesa Alice Guy-Blaché (1873-1968), que tem cinemateca dedicada ao conjunto da obra dela com mais de 1 mil filmes.

A curadoria selecionou 43 filmes, que trazem mulheres como diretoras, roteiristas, produtoras ou atrizes em papeis de destaque. A abertura terá exibição de Meu corpo é político (2017), de Alice Riff, hoje às 16h30. A seção será mediada por Luísa Pecora, criadora do site Mulher no cinema (mulhernocinema.com). A mostra promove momento de imersão no trabalho das diretoras Maria Augusta Ramo, Ana Luiza Azevedo, Martha Kiss e a produtora Débora Ivanov.

Em conferências, as convidadas falam do processo criativo e conversam sobre filmes produzidos por elas que serão exibidos. Tâmara Braga, que assina a curadoria com Maiz Assumpção e Adyar Assumpção, destaca Elena (2012), dirigida por Petra Costa e com direção de arte de Martha Kiss, como filme exemplar para pensar a questão de gênero no cinema: “É uma temática feminina e contada por uma mulher”. “Débora tem atuação importante na Agência Nacional do Cinema (Ancine) e uma das maiores produtoras do Brasil, com mais de 200 trabalhos.” Tâmara ainda destaca as contribuições de Maria Augusta no documentário O processo, filme em cartaz em Belo Horizonte, que reconta os fatos que levaram à deposição da presidente Dilma Rousseff, e o trabalho de Ana Luiza à frente da Casa de Cinema de Porto Alegre.

Alice Guy-Blaché se destaca no universo cinematográfico não só pelo número de produções, como também pelas inovações introduzidas por ela, fundamentais à estruturação, nos primeiros anos, da linguagem audiovisual. A contribuição é tão significativa quanto a dos irmãos Lumière. No entanto, até mesmo nos cursos da área, ela fica em segundo plano ou não é sequer citada, como lembra Tâmara. “Os irmãos Lumière apresentaram versão do cinematógrafo em dezembro de 1895. Mas Alice tem conhecimento equipamento semelhante em março do ano anterior. Como tem origem em família de livreiros e gostava de literatura, ela saca que pode fazer filme de ficção”, esclarece a curadora.

 

Cinémathèque Française/Divulgação
Dona de contribuição importante à sétima arte, Alice Guy-Braché é pouco lembrada. (foto: Cinémathèque Française/Divulgação)
 

 

Alice é apontada como a primeira autora de ficção no cinema, em 1897. Também é pioneira na abertura do primeiro estúdio de cinema em Nova York. No entanto, ela é completamente apagada na história do cinema. “Como desaparecem com a história de uma mulher dessa?”, questiona Tâmara. A curadora ainda destaca que Alice foi responsável pela coloração da película e sincronização entre som e imagem. “Ela representa aquilo que aconteceu mulheres na história do cinema: um grande apagamento”, diz.

Para a mostra, foram selecionadas 33 produções da francesa. “A pauta da mulher como protagonista no audiovisual vem aquecida mundialmente e nacionalmente nos últimos dois anos. É uma reivindicação no Brasil e no mundo todo para que as mulheres assumam maior protagonismo. Na verdade, o interesse é que as mulheres possam contar suas histórias, mostrar sua visão das coisas. Ainda tem muito pouca produção feminina no Brasil e no mundo.”

Os trabalhos selecionados pelo Imagem dos povos podem ser vistas tanto no cinema como na internet (www.imagemdospovos.com.br). Criada em 2005 com o propósito de exibir produções nacionais e internacionais em múltiplas plataformas – cinema, TV e web –, a concepção da mostra está relacionada à ideia de diversidade no audiovisual. Embora houvesse preocupação com o equilíbrio de gênero, é a primeira vez que toda a programação traz obras realizadas por mulheres. Na edição de 2016, das 46 produções, 21 eram dirigidas por mulheres.

 

Studio Riff/Divulgação
Linn da Quebrada em cena de 'Meu corpo é político', que abre a mostra nesta terça-feira (29), às 16h30. (foto: Studio Riff/Divulgação)
 


A imagem usada como símbolo da mostra é um rosto formado por traços de cinco mulheres: a escritora Carolina de Jesus (1914-1977), a heroína da Revolução Pernambucana Bárbara de Alencar (1760-1832), Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), a cangaceira Maria Bonita (1911-1938), e a guerreira do povo kaiapó Tuira Kayapó.

A curadora destaca que encontrar produções que promovam a acessibilidade, com legenda descritiva ou audiodescrição foi um desafio. Todos os 43 filmes têm legenda descritiva e foi feita a audiodescrição de Esplendor (2018), da diretora Naomi Kawase. Com essa opção pela diversidade, a mostra ainda pretende fortalecer o audiovisual em Minas. “Imagem dos povos procura fomentar a produção audiovisual mineira. A diversidade traz a possibilidade de as pessoas que vivem em Minas terem sua história contada”, afirma Tâmara.

 

IMAGEM DOS POVOS – MULHERES
Festival de cinema. De terla-feira (29) a 3 de junho. CineSesc. Sesc Palladium (Av. Augusto de Lima, 420, Centro, (31) 3270-8100). Abertura com o filme Meu corpo é político, de Alice Riff, às 16h30. Programação completa: imagensdospovos.com.br.

Três perguntas para...


Maíz Assumpção
cocuradora

A Alice Guy-Blaché é um exemplo de como o trabalho das mulheres tem sido apagado na história do cinema. Como reverter esse cenário?
Pioneira, Alice virou líder de estúdio muito rápido. Não entendo os motivos pelos quais se perde essa informação e não são dados os créditos a ela. É estranho, mas é comum. Há quatro ou cinco anos, isso tem sido questionado. A mulher não aceita mais não receber os créditos e bate o pé. O momento permite isso. As mostras têm o objetivo de formar o público e dar acesso a essas informações apagadas. O cinema é ferramenta poderosa, pois consegue chegar a todo mundo. Quanto mais fomentar e dar visibilidade a esses materiais, mais conseguiremos reparar.

Como o conceito de diversidade guia o olhar da curadoria?
Procuramos encontrar a fala de todos. Neste ano específico, procuramos os diferentes olhares femininos. Não temos um único olhar feminino. Por exemplo, os quatro documentários são bem diferentes entre si, com linguagens narrativas distintas.

O último levantamento da Ancine mostra lacuna no audiovisual brasileiro da produção de mulheres negras. Como essa questão é pensada por vocês nesta mostra?
Nesta edição, não temos produção de diretora negra na mostra. Foi um grande desafio. Queríamos trazer o Café com canela, da diretora Glenda Nicácio. Mas como está distribuição comercial, não conseguimos. Participará da mostra em momento futuro. O caso do homem errado, de Camila de Moraes, é o primeiro filme de diretora negra entrar no circuito comercial depois de Adélia Sampaio – primeira mulher negra a dirigir longa-metragem no Brasil. Tem muita gente produzindo. Teremos muito filme pronto no final do ano. Um exemplo é Sabrina Rosa, que desenvolve o projeto maravilhoso O poder, mas que, infelizmente, não ficou pronto para participar da mostra. Este é um ano importante para o cinema negro feminino.

 

Abaixo, confira o trailer de Meu corpo é político:

 

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