Parte do Brasil desconhecido foi revelada no Festival de Cannes numa língua pouco ou nada familiar aos brasileiros, o krahô, presente em Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, vencedor do Prêmio do Júri, da mostra Um certo olhar. A produção tem no seu DNA a Entre Filmes, sediada em Belo Horizonte, do realizador Ricardo Alves Júnior, responsável pela coprodução com Thiago Macedo Correia. O Estado de Minas conversou com a diretora Renée Nader sobre os desafios de filmagem. Chuva é cantoria será apresentado em festivais no Brasil, com previsão de estreia no circuito comercial no ano que vem.
Foi em 2009 que Renée chegou à aldeia Pedra Branca, próximo a Itacajá, em Tocantins, por indicação do amigo de faculdade Lincon Fonseca. A convite da família do indígena, Lincon faria documentário sobre fim de luto de liderança Krahô. Renée se ofereceu para fotografar a produção. A viagem foi rápida, com permanência de uma semana. Mas tempo suficiente para que ela ganhasse nome indígena, batismo naquela cultura.
A experiência definidora motivou Renée a retornar, agora na elaboração do projeto Cinema de aldeia, inspirado no Vídeo nas aldeias.
Renée voltou diversas vezes e foi ampliando as temporadas, até que, em 2013, deixou a casa em São Paulo e alugou uma “casinha” em Itacajá para que pudesse desenvolver o Mentuwajê do Olhar e Sentir, projeto em que apresenta brincadeiras audiovisuais na escola da aldeia, com professores indígenas e crianças.
OFICINAS
A relação não começa e não se encerra com Chuva é cantoria. Atualmente, os diretores colaboram com a Associação Centro Cultural Kajrè. Um dos projetos desenvolvidos é o acervo digital composto de materiais audiovisuais de todos os que visitaram o lugar.
Renée viu os adolescentes crescerem, se casarem e até mesmo terem filhos. Uma das jovens do grupo, Ilda Patpro, participou de concurso de filme-minuto do Tocantins e ganhou o prêmio de melhor filme com vídeo que mostrava o bebê da jovem comendo buriti. Entendeu que podia eternizar o crescimento de seus filhos – tem três. Esses jovens cinegrafistas continuam registrando festas, histórias e cantigas. Mais do que isso, passaram a usar a linguagem do vídeo para denunciar a falta de diálogo e arbitrariedade com que os “braços institucionais” atuam.
O diretor João Salaviza chegou à aldeia Pedra Branca em 2014, quando fez com Renée exercícios de imagem. Nesta temporada, a comunidade decidiu que queria produzir telejornal com periodicidade semanal sobre as novidades da aldeia.
Luto
Chuva é cantoria foi rodado em nove meses na aldeia Pedra Branca, em negativo de 16mm. A história gira em torno de Ihjãc, jovem do povo krahô, que, depois de se encontrar com o espírito do pai, falecido, vê-se obrigado a realizar a festa de fim de luto. Embora o filme tenha elementos documentais, é uma ficção. Na produção, Renée e João construíram relação de amizade com a etnia. A dupla tinha a convicção de que a obra não poderia se impor à realidade local e levou o antropólogo Vitor Aratanha, sem experiência com cinema, para fazer a captação do som. Foi fundamental. Vitor fala a língua krahô.
TRADIÇÕES EM MG
Foi lançado nesta quinta (24) o edital de Premiação das festas tradicionais das comunidades indígenas e grupos tribais. Serão distribuídos 13 prêmios, no valor de R$ 15 mil, totalizando R$ 195 mil para iniciativas de promoção de tradições expressas através de jogos, música, danças e diversas atividades culturais, considerando a importância das festividades para manter os costumes e os valores dessas comunidades. Promovido pela Secretaria de Estado da Cultura pela quarta vez, o edital se destina a 13 povos aldeados. As inscrições podem ser feitas até 9 de julho. O resultado será divulgado em 3 de agosto. Mais informações: www.cultura.mg.gov.br.
TRÊS PERGUNTAS PARA...
Renée Nader Messora - diretora
Todo o filme é na língua krahô. Como foi seu contato com essa língua?
O Brasil indígena tem mais de 150 línguas e dialetos. O krahô pertence ao tronco macro-jê e à família jê. Nós, brancos e estrangeiros, ignoramos essa pluralidade por completo. Para nós, é só o tupi, e olhe lá.
Como foi feita a tradução?
Alinhamos durante as filmagens. O Vitor Aratanha, com a ajuda da sua companheira, Amxykwyj, fazia a tradução. Era bem básica. Servia para que pudéssemos ter a certeza de que os diálogos faziam sentido na narrativa. Com a versão final de montagem, aproveitamos para formar uma equipe e fazer uma tradução mais fina. Trabalhamos durante dois meses com a Ana e o Ian, amigos antropólogos (e profundos conhecedores da estrutura da língua). Com Vitor e equipe de indígenas identificaram conceitos-chave que se repetiam e propuseram maneiras de amplificar esses conceitos. Por exemplo, a ideia do mecarõ. O mecarõ é o duplo, que pode significar o reflexo na água, no espelho, a sombra, a fotografia e o filme, os espíritos. Decidimos não traduzir. É conceito tão amplo e profundo que qualquer tradução seria uma traição, um reducionismo que não aportaria nada à narrativa – e menos ainda à maneira do krahô de olhar para as coisas.
A violência contra os povos originários é muito grande no Brasil. Em que medida a demarcação das terras indígenas é importante para a manutenção da cultura?
Vou citar pessoa genial, o Viveiros de Castro. As terras que os índios ocupam não são sua propriedade, são eles que pertencem à terra. Isso os define. A demarcação é o ponto de partida para se pensar a manutenção da cultura e, antes que isso, para se pensar a (r)existência desses povos. Diferentes governos demonstram desconhecimento profundo e vêm, sistematicamente, aniquilando essas possibilidades de ser. Esse processo está acelerado. A bancada ruralista assumiu o controle do Congresso e o governo ilegítimo do Temer faz qualquer tipo de atrocidade para se manter. Em vez de avançarmos na demarcação de todas as terras indígenas, temos que gritar para não perder os pouquíssimos direitos conquistados nesses 30 anos..