Aos 30 anos, o brasileiro Joe Penna, radicado nos Estados Unidos desde os 12, parece ter conquistado o sucesso repentino. Seu primeiro longa-metragem, Arctic, estreou no Festival de Cannes, como parte da seleção oficial fora de competição, na seção Midnight Screenings. O filme conquistou o aplauso da crítica e foi incluído na lista dos melhores títulos da 71ª edição de Cannes, encerrada no sábado passado, pelas publicações Variety e IndieWire.
Mas Penna deu um passo de cada vez em sua trajetória até o reconhecimento. Ele começou na internet, em 2007, como MysteryGuitarMan (“Guitarrista Misterioso”), um canal amador no YouTube, em que exibia sua criatividade musical e com o qual atraiu milhões de visualizações. O êxito o levou a dirigir clipes musicais e comerciais para a TV americana. Fez seu primeiro curta-metragem, que circulou por festivais alternativos. Na sequência, teve experiências com médias-metragens e, só então, sentiu que estava preparado para realizar seu primeiro longa.
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O protagonista do longa sobre um piloto que se acidenta no Ártico e tenta sobreviver em condições extremas é o dinamarquês Mads Mikkelsen, famoso por papéis como os de A caça, que lhe rendeu o prêmio de melhor ator em Cannes em 2012; o vilão de 007 – Cassino Royale (2006) e o protagonista da série Hannibal (2013-2015). Quando o sobrevivente do desastre aéreo vê uma chance de ser resgatado da região gelada, um novo acidente derruba o helicóptero que iria resgatá-lo e deixa aos seus cuidados a piloto (interpretada pela islandesa Maria Thelma Smáradóttir), ferida. Quase não há diálogos no filme.
“A história apresenta a seguinte reflexão: quão longe chega o altruísmo? Até onde você é capaz de ir para ajudar uma outra pessoa, quando a sua própria vida está em risco? O protagonista sabe que, se não fizer nada, aquela outra sobrevivente vai morrer, e decide que o melhor a fazer é tentar salvar a ambos”, diz o diretor.
A inspiração para esse seu primeiro longa-metragem veio de uma imagem que Joe Penna viu na internet, há aproximadamente três anos, levantando a possibilidade de levar vida a Marte. A ideia de se viver em um ambiente hostil ao homem instigou o cineasta, que formulou um roteiro em parceria com o amigo Ryan Morrison. “Queríamos contar uma história universal, sobre sobrevivência, mas ambientada em Marte. Quando enviamos o roteiro para nossos agentes, eles perguntaram: ‘Vocês já ouviram falar do novo filme do Ridley Scott?”, lembra Joe.
O novo filme de Ridley Scott era Perdido em Marte (2015), com Matt Damon, que se tornaria um dos grandes sucessos de bilheteria daquele ano e teve sete indicações ao Oscar. As similaridades entre as histórias fizeram Joe Penna descartar seu argumento inicial. Restou aos roteiristas alterar a ambientação. “No final das contas, levar a história para o Ártico favoreceu o roteiro. Nossa ideia original necessitaria de muitas explicações técnicas e, da forma como fizemos, o filme ficou mais fácil de ser entendido”, avalia o diretor. As filmagens foram na Islândia e levaram apenas 19 dias.
Arctic já tem estreia no circuito de cinema da França agendada para dezembro e também deve ser lançado este ano em países como Alemanha e Rússia. O diretor está em negociações com distribuidoras dos Estados Unidos e da América Latina, mas não há previsão de lançamento nesses locais. É possível que o filme chegue ao Brasil no primeiro semestre de 2019.
YOUTUBER Fazer-se entender é uma preocupação de Joe Penna desde o início de sua carreira como youtuber. “Quis fazer um filme com essa mesma proposta do meu canal, onde todos os vídeos podem ser entendidos independentemente da nacionalidade de quem assiste. Ao longo de Arctic, o protagonista tem em torno de 15 falas, que de forma alguma comprometem o entendimento do enredo”, afirma.
Em seus vídeos de maior sucesso no YouTube, o brasileiro faz releituras inusitadas de diversas músicas. Ele usa flauta para executar a introdução de Bohemian rhapsody, do Queen; piano, teclado e violão para interpretar Gangnam style, hit do sul-coreano Psy; e até a Sinfonia nº 5, de Beethoven, ganhou uma versão com vuvuzelas. “Comecei fazendo vídeos simples, de forma rudimentar. Fui aprendendo as técnicas aos poucos e aprimorando o conteúdo”, lembra.
Mas ele entende que seus tempos de glória na web chegaram ao fim. Com o tempo, Joe sentiu que seus vídeos não mais se encaixavam entre o que fazia sucesso na plataforma. “O YouTube mudou os algoritmos, e as formas de financiamento. Além disso, o tipo de conteúdo que eu produzia não é o que bomba na internet hoje em dia”, afirma. Há sete meses sem postar vídeos, ele diz que, apesar de não colher os mesmos louros de antes, não gostaria de aposentar o seu lado youtuber. “Precisei me afastar do canal, porque a produção do filme demandou muito trabalho. E não posso dedicar tempo integral aos vídeos, já que o retorno financeiro (angariado através das propagandas na plataforma) não é suficiente.”
A forma criativa e peculiar de fazer música que deu fama a Joe Penna na plataforma de vídeos ficou de lado na produção de seu primeiro longa. “Quando apareci em Cannes, muita gente achou que eu apresentaria um filme moderno, com cortes rápidos, ou uma animação, um trabalho em stopmotion... Mas Arctic é clássico em todos os sentidos, incluindo a trilha sonora. No futuro, quem sabe, as pessoas poderão ver o meu lado MysteryGuitarMan, quando surgir o projeto certo.”
MARTE Embora tenha refeito seus planos para rodar Arctic, o diretor não abandonou a ideia de falar sobre Marte. Seu próximo longa-metragem, que ainda está sendo roteirizado, mostrará a jornada de quatro tripulantes de uma nave especial que, durante a viagem, descobrem que não existem recursos necessários para a sobrevivência de todos eles no Planeta Vermelho. O argumento é inspirado no filme Um barco e nove destinos (1943), de Alfred Hitchcock. “Ainda vou chegar em Marte um dia”, brinca Joe.
O Brasil é outro destino certo em sua rota de filmagens. Vivendo nos Estados Unidos desde a pré-adolescência e atualmente morando com com a esposa em Los Angeles, Joe Penna passou 15 anos sem vir ao Brasil, mas diz que mantém forte ligação com suas raízes e tem o desejo de filmar aqui.
Na avaliação dele, a representação do Brasil nos filmes que chegam ao mercado internacional é carregada de estereótipos. A violência é característica de boa parte deles, como Cidade de Deus (2002), Carandiru (2003) e Tropa de elite (2007). “Apesar de o cinema brasileiro ser bem diverso, ouvi de muitas pessoas, em Cannes, que os filmes brasileiros são sempre parecidos.”
Com Central do Brasil (1998), indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e melhor atriz (Fernanda Montenegro), Joe Penna torceu por seu país levar a estatueta, no ano em que trocou São Paulo pelos Estados Unidos. Produções nacionais da década de 1960 e 1970, pertencentes ao Cinema Novo, também estão entre as favoritas de Joe – como Deus e o Diabo na terra do sol (1964) e Vidas secas (1963). “O cinema brasileiro é muito especial para mim. Cresci assistindo a esses filmes e, de certa forma, eles fizeram o diretor que eu sou hoje.”
Abaixo, confira o trailer de Arctic: