''Queria muito uma pessoa que não fosse o clichê da atriz negra, bonita e gostosa”, diz a cineasta carioca Lúcia Murat, de 69 anos. “Mas eu sou gostosa”, responde a atriz mineira Grace Passô, de 37. “É verdade”, completa Lúcia, “mas não é clichê”.
Tal diálogo já foi reproduzido pela dupla algumas vezes para falar sobre o trabalho conjunto em Praça Paris. O longa-metragem de Lúcia Murat estrelado por Grace Passô estreia nesta quinta-feira (10) no Cine Belas Artes – o lançamento, por sinal, ocorre no sufoco, depois de ter ficado duas semanas na geladeira, dada a dificuldade de programar salas de arte na capital mineira. A estreia nas demais capitais brasileiras foi no último dia 26.
Leia Mais
Em apresentação na Flip, Grace Passô questiona dramaturgia estabelecidaGrace Passô mostra em BH esta semana o monólogo Vaga carneGrace Passô leva o Prêmio ShellMarcos Caruso e Grace Passô levam prêmio Shell de TeatroCom Penélope Cruz e Javier Bardem, thriller psicológico decepciona em CannesSônia Braga estará em Bacurau, próximo filme de Kleber Mendonça FilhoLonga em preto e branco 'À sombra de duas mulheres' chega ao circuito de BH“Não tinha vivência como atriz de cinema, e muitas colegas de trabalho não têm, por vários motivos.
E foi o teatro que aproximou Grace e Lúcia. Convidada para fazer a dramaturgia da peça Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos (2015), dirigida por Georgette Fadel, Grace entrevistou Lúcia, que integrou a luta armada durante a ditadura militar. Mais tarde, quando a produção de Praça Paris começou efetivamente, a diretora foi vê-la no teatro.
PRÊMIOS “Quando apresento este filme, em qualquer lugar do mundo que seja, só perguntam dela”, comenta a cineasta. No Brasil, Praça Paris foi exibido no fim de 2017, no Festival do Rio – o evento concedeu os prêmios de melhor direção para Lúcia e atriz para Grace. O FEStin, em Lisboa, também deu o prêmio de atriz para ela.
“Eu tinha uma curiosidade em relação ao trabalho da Lúcia, pois Que bom te ver viva (1989, sobre a vida de mulheres que, como ela, atuaram na guerrilha, foram presas e torturadas) foi um filme que marcou muito minha família em determinada época. Além disso, a proposta da Lúcia, desde o início, era ter um processo grande de construção de personagens. O trabalho que desenvolveu me aproximou mais de um processo cinematográfico, coisa que eu queria viver há algum tempo”, conta Grace.
Praça Paris surgiu como uma possibilidade remota há uma década. Só realizado tantos anos depois, dialoga diretamente com o Rio de Janeiro sob intervenção militar. A trama explora a relação entre uma psicanalista portuguesa, Camila (Joana de Verona) e sua paciente Glória (Grace). As duas têm a mesma faixa etária, mas vivem em situações absolutamente distintas.
Já Glória tem um histórico de agressão familiar. Foi violentada pelo pai quando criança. Hoje, vivendo sozinha numa comunidade, tem como parente mais próximo o irmão preso, chefe do tráfico no morro. As sessões de terapia aproximam as duas mulheres de tal forma que há uma transferência inversa – o medo acaba dominando a psicanalista, em meio a uma explosão de violência nas favelas cariocas.
Foi por meio de uma conversa com uma amiga psicanalista, uma década atrás, que o mote do filme veio à tona. “Isso foi antes das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora). Essa amiga, que coordenava um grupo de terapia para carentes numa universidade, comentou que estava com problemas com meninas de classe média alta, que estavam desenvolvendo transferência, paranoia, com pacientes com histórico de violência.” Lúcia pensou naquele momento que, a partir disso, ela poderia criar um thriller.
A história, como tantas outras, ficou engavetada. Cineasta que passeia pelo documentário e pela ficção, com uma obra que busca refletir sobre a realidade brasileira, Lúcia Murat nunca havia trabalhado num filme de gênero. Com o projeto de Praça Paris em mãos, foi atrás de um parceiro improvável para desenvolver o roteiro, o escritor Raphael Montes (Dias perfeitos, Suicidas, entre outros), jovem autor de suspense e romances policiais.
“Quando recomecei a pensar no projeto, voltei à ideia original do thriller. Eu não tinha experiência nisso e vi que o Raphael, que na época não era conhecido, tinha feito um livro.
Foi de Raphael, por exemplo, a ideia de colocar as personagens atuando na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Grace, inclusive, fez laboratório com as próprias ascensoristas da instituição. A partir da Praça Paris, que dá título ao filme, Lúcia criou uma narrativa que fala sobre conflito cultural e discute colonização, exclusão, preconceito, relações de poder.
O lançamento do filme justamente agora é “uma tristeza, do ponto de vista da realidade”, diz Lúcia. “O filme serve para discutir, mais uma vez, que a militarização no Rio não é uma solução, pois ela chama para mais violência. Quem está morrendo todos os dias são as pessoas na favela. A classe média vive isso indiretamente. Seja na televisão, no contato com a empregada que mora no morro. Basicamente, ela (a classe média) não sofre todos os dias. Ao mesmo tempo, está cada vez mais paranoica, perversa, racista, através do processo que os outros (os moradores das comunidades) vivem de forma extrema”, avalia.
Abaixo, confira o trailer de Praça Paris: