“Empresta a identidade do senhor?” O pedido da funcionária de uma agência bancária ao índio Perpera Suruí, o protagonista de Ex-pajé, é feito de forma despretensiosa. Mas revela uma das principais questões do documentário de Luiz Bolognesi, em cartaz no Cine Belas Artes: a perda da identidade de um líder indígena depois do contato com os homens brancos.
Roteirista de longa-metragens como Bicho de sete cabeças, Como nossos pais e Bingo – O rei das manhãs, o paulistano Bolognesi tem interesse pela cultura indígena desde os 20 anos de idade. Estudou antropologia, deu aula para os pataxós e conviveu com os guaranis-kaiowás e craôs. Em Rondônia, durante a produção de uma série de tevê sobre jovens conectados com a internet, perguntou aos suruís, que viveram isolados até 1969, onde estava o pajé da tribo. “Pajé, não. Ex-pajé”, respondeu um deles. Intrigado (“Já tinha visto ex-ministro, ex-jogador de futebol, ex-pajé jamais”), Bolognesi foi atrás e se deparou com Perpera: calça de tecido, camisa social maior do que o seu número, gravata escura. Era um índio vestido de homem branco, como aparece no filme. “Estou assim não porque eu quero, mas porque eles viram a cara para mim. E ainda me proibiram de tocar as flautas para os espíritos da floresta”, revelou Perpera ao roteirista e cineasta, diretor da animação Uma história de amor e fúria (2013).
“Meu coração e minha mente me diziam que devia seguir esse homem e mergulhar na história dele”, conta Bolognesi, em entrevista ao Estado de Minas. “Esse foi o ponto de partida: a paixão e a profunda angústia que senti por aquela personagem. Não foi do conceito para a realidade, foi da realidade para o conceito. Aquele drama me pareceu um conflito extraordinário para ser mostrado no cinema.”
No documentário, premiado no Festival de Berlim e no É Tudo Verdade (São Paulo), Bolognesi mostra como a liderança religiosa do suruí foi sendo escanteada e subjugada depois da chegada de missionários evangélicos. “O pastor disse que o pajé é coisa do diabo”, o filme registra, bem como o contraponto cristão: “Jesus é maravilhoso: ele salva, ele cura”. Perpera chega a constatar, pesaroso: “Quando eu era pajé, as pessoas pediam conselho e proteção”.
“O pajé virou o zelador da igreja evangélica, o que representa uma humilhação”, destaca Bolognesi. “Mas Perpera, durante o culto, fica de costas para o pastor. Faz a sua resistência ao mostrar que não escuta o que se diz lá dentro, prefere ouvir os sons da floresta”, conta. Ele incluiu na abertura do longa uma definição do antropólogo francês Pierre Clastres sobre etnocídio: “Não é a destruição física dos homens, mas a destruição de seus modos de vida e pensamento”.
Luiz Bolognesi evita os recursos tradicionais do documentário – entrevistas, letreiros explicativos, narrador em off – e prioriza os registros da vivência de seu personagem. “Na aparência, é uma ficção. Não tem o formato comum de documentário. Filmamos flagrantes do dia a dia e também reencenamos histórias que eles me contaram. Só pedíamos uma coisa para os indígenas: não olhem para a câmera. E eles fizeram isso”, conta.
Além de 30 horas de filmagem, o período de convívio intenso com os paiter-suruí resultou em aprendizado pessoal. “Amadureci meu olhar para o cinema. Tentei diminuir a verborragia e trazer o silêncio. Tudo que (Andrei, cineasta russo) Tarkovski diz no livro Esculpir o tempo eu vivenciava no convívio: os índios são escultores do tempo, não são escravos dele. Meu filme tenta reproduzir o tempo indígena”, acredita. Além de Tarkovski, ele cita os livros A sociedade contra o Estado, de Clastres, e Vigiar e punir, de Michel Foucault, como referências para o seu trabalho. Ao lado, trechos da entrevista de Luiz Bolognesi.
Como acontece o enfraquecimento da liderança espiritual do pajé?
É assustador. O terror psicológico é utilizado para destruir a força dos pajés. Os pastores evangélicos não são violentos frontalmente, mas criam clima por meio do uso da imagem do demônio. Sabem que os povos nativos são sensíveis a essas entidades e falam o tempo todo que se os índios não aceitarem Jesus, eles vão para o inferno. O pajé não compra esse discurso.
Você assina o roteiro e a direção do filme. Como foi a convivência do roteirista com o diretor e quem ganhou essa disputa?
Foi um processo dialético e os dois tiveram vitórias parciais (risos). O diretor dizia: “Não faz sentido fazer um roteiro fechado se você quer filmar uma comunidade indígena na sua autenticidade, planejar demais é trair a sua história”. O roteirista concordava: “Você tem razão, diretor: temos que filmar respeitando esses princípios”. Durante as filmagens, era a vez de o roteirista questionar: “Sim, diretor, mas cadê o conflito? Você está filmando situações líricas e poéticas, mas não tem densidade dramática, não tem filme aí! Cinema sem conflito não é cinema!”. Aí o roteirista colaborava com o diretor e escolhia situações que poderiam ser encenadas pelos indígenas.
E na montagem?
O roteirista voltou muito forte também na montagem. Tínhamos 30 horas de filmagem.
O que os brancos podem aprender com os indígenas?
Passou da hora de o Brasil aprender com os indígenas a resolver suas crises: eles são potentes em muitos aspectos. Produzem economia de modo ecológico, entendem de sustentabilidade muito mais que nós, conseguem produzir felicidade sem precisar de consumo. E também podemos aprender a maneira como eles lidam com o tempo e o destino. Estão totalmente abertos ao imprevisto, ao devir. Nós estamos sempre insatisfeitos com o nosso desempenho ao longo do dia. A ansiedade é a nossa grande doença. Eles, não. E o grande ganho é viver o presente de uma forma muito mais intensa o presente. O aqui e agora é tudo. Eles são serenos, inclusive diante dos conflitos. Acham péssimo o sangue ferver, abominam essa atitude.
E o que você aprendeu?
Parar para escutar. Perceber que os barulhos da mata trazem narrativas. Um grito de macaco significa que um gavião está ali, portanto, as araras vão passar voando em dois minutos. Eles sabem ler os acontecimentos. Aprendo muito com esses povos. Como operário das artes, sinto-me na missão de traduzir esse conhecimento para a civilização branca. Tento estabelecer conexão por forma da arte.
Como é mostrada no filme Ex-pajé a relação dos indígenas com o avanço da tecnologia?
A gente tentou mostrar não o discurso maniqueísta de tecnologia contra a identidade indígena, mas a ambiguidade dessa relação. Como eles se apropriam da tecnologia é o que mostro: muitos dos problemas que os indígenas enfrentam são os mesmos que nós, brancos, passamos com nossos filhos, viciados em videogame ou 18 horas por dia no whatsapp.
Por que a discussão sobre o uso da tecnologia pode ser perigosa?
Porque muitos se aproveitam dessas mudanças para dizer que eles não são mais indígenas. É verdade que muitos índios usam roçadeiras, picapes, motos, celulares. Mas falam a língua deles, produzem sem desmatar tudo, têm uma produção sustentável, pensam no tempo deles. Continuam, essencialmente, indígenas. Não é porque os portugueses não andam mais de caravelas que deixaram de ser portugueses.
A quem interessa o enfraquecimento da liderança do pajé?
O processo de destruição de cultura é estratégico para apropriação de terras indígenas. Há uma ação orquestrada das bancadas do agronegócio e evangélicas para tomar essas terras. Eles tinham 100% do território brasileiro, atualmente têm 10%. Quando os pajés são massacrados, a cultura se liquefaz e vira folclore.
Como seu filme pode mudar a vida de Perpera, o ex-pajé?
Não sei. Mostrei o filme na aldeia, percebi que causou constrangimento e reflexão. O que eu gostaria é que a reflexão volte a valorizar a personalidade e a posição dele no grupo. Se vai acontecer, só o tempo vai dizer. É uma escolha que eles, os indígenas, terão de fazer.
Ex-pajé é sobre o quê?
É um filme sobre a potência das culturas americanas e a inquisição cristã.
EX-PAJÉ
Documentário de Luiz Bolognesi. 82 minutos. Em cartaz no Cine Belas 3, às 16h, e no Belas 2, às 20h.