Algo de mágico está se passando com o cinema brasileiro autoral em 2018. Arábia, da dupla Affonso Uchoa e João Dumans, embala uma discussão sobre a classe trabalhadora, que vem do ano passado, numa prosódia mineira que fica feito música no ouvido do espectador. E isso ocorre no momento em que o diretor Felipe Hirsch propõe, com Severina, outro filme que se coloca à margem das questões políticas do tempo para falar de amor. Severina parece deslocado, atemporal.
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O que existe é o fascínio de Javier Drolas, o livreiro, por Ana (Carla Quevedo). É o mesmo fascínio que o cineasta experimenta por sua atriz. “Foi a minha mulher que me falou dela, elogiando seu trabalho na série Show me a hero, da HBO. A Carla também trabalhou no filme O segredo dos seus olhos, que venceu o Oscar. Ana é fascinante porque permanece um enigma. Suas motivações nunca são muito claras. Roubar os livros talvez seja a grande aventura da vida para ela. E, ao fazê-lo, ela enrola, seduz os livreiros. De qualquer maneira, não creio que faça isso de forma consciente.”
Nos últimos anos, Felipe Hirsch mergulhou intensamente na latinidade, com a tetralogia Puzzle e A tragédia e A comédia latino-americana. Escreveu uma série de TV ainda inédita com 20 autores da América Latina, e foi por meio dela que chegou a Rodrigo Rey Rosa. Hirsch conta que o autor de Severina foi estudar cinema em Nova York, mas largou a escola. Em Tânger, tornou-se amigo do também escritor John Bowles, que foi quem o apresentou ao mundo anglo-saxão das letras. Roberto Bolaño sempre foi louco por ele. “Dizia que o Rey Rosa era o escritor dos escritores.” Essa riqueza do autor impregna a ficção de Severina. “Rey Rosa diz que o livro é um delírio amoroso, uma metáfora sobre o poder libertador do perdão. Tudo isso me atingiu muito porque eu estava vivendo um processo muito intenso de separação.”
Severina virou esse mergulho cinematográfico no imaginário de tantos autores/atores latinos. “Tive o privilégio de contar com a cumplicidade de grandes artistas que ajudaram a enriquecer o trabalho. O Daniel Hendler, que nem estava previsto, é uma referência no cinema de Daniel Burman. E o chileno Alfredo Castro transforma esse pequeno papel, do suposto avô, numa coisa mágica.”
Existem ecos de Jorge Luis Borges – O aleph – e Hirsch sabe que tudo isso contamina as fronteiras entre o real e o irreal. “Houve um tempo, na Companhia Sutil, em que eu usava linguagem de cinema no teatro. Mas, no cinema, o que me interessa é quebrar os códigos. Usar a câmera sem truques.” Daí a beleza austera de Severina, que prescinde de efeitos. Felipe Hirsch admira-se que o filme que pretendia rodar em Porto Alegre tenha sido feito em Montevidéu, mesmo que a cidade não seja identificada como tal. “Foram as circunstâncias”, explica. Por elas entendam-se parcerias econômicas que não deram certo e outras – com o produtor Rodrigo Teixeira – que viabilizaram a empresa. A livraria de Drolas era uma antiga farmácia na Ciudad Vieja da capital uruguaia, conta. “Não faço nem ideia, mas meu diretor de arte, o Gonzalo Delgado, conseguiu 30 mil volumes (livros) para colocar lá dentro.” O resultado é admirável, esse comprometimento sincero que faz a força e a beleza de Severina.