Inspirado no livro premiado de Carlos Heitor Cony, filme de Ruy Guerra contrapõe passado e presente

'Quase memória' traz Tony Ramos, João Miguel, Mariana Ximenes e Charles Fricks no elenco

por 18/04/2018 20:03
Publicado em 1995, Quase memória, obra que deu a Carlos Heitor Cony os prêmios Jabuti de romance e livro do ano, apresenta, em forma de anedota, lembranças que o autor guardou do pai, o jornalista Ernesto Cony Filho. Essa volta ao passado tem início quando Cony recebe inesperadamente um envelope com escritos do pai, morto há pelo menos uma década.
Fotos: Pandora Filmes/divulgação
Os atores Charles Fricks e Tony Ramos dão vida ao jornalista Carlos Heitor Cony (foto: Fotos: Pandora Filmes/divulgação)

O cineasta Ruy Guerra leu Quase memória logo após sua publicação. Dois ou três meses mais tarde, adquiriu os direitos de adaptação para o cinema. “Pensei em filmá-lo quase imediatamente, mas surgiram problemas para levantar recursos, o que inviabilizou o projeto”, comenta o diretor moçambicano. O filme estreia hoje em Belo Horizonte, no Cine Belas Artes.

Ao levar o livro para o cinema, Ruy Guerra, que dividiu o roteiro com Bruno Laet e Diogo Oliveira, transformou a narrativa em comédia com tom farsesco. Em vez de mostrar passagens num simples flashback, fez diferente. Colocou dois Carlos em cena: o velho, que já viveu tudo e cuja memória falha, interpretado por Tony Ramos, e o jovem, que ainda tem muito a viver e se lembra bem dos tempos passados, papel de Charles Fricks.

“Quando estávamos mais perto das filmagens, constatei que faltava certo dinamismo ao personagem. Não queria fazer pequenos flashes, mas trazer o presente com maior concretude. Como o protagonista não tinha um antagonista, ele tinha que ser o seu próprio antagonista”, continua Guerra. Os dois Carlos estão em permanente desacordo, e o segundo acaba puxando pela memória do primeiro.

Ernesto, o pai de Carlos que aparece na tela (personagem interpretado por João Miguel), é um homem excêntrico. Fazendo uma loucura atrás da outra, consegue levar uma vida fora dos padrões. Essa figura só é possível diante da memória fragmentada do protagonista idoso. A mãe de Carlos, Maria, é interpretada por Mariana Ximenes. A atriz mineira Inês Peixoto, do Grupo Galpão, faz uma pequena participação como a sogra de Ernesto.

A memória, e a maneira como a desenhamos frente à passagem do tempo, é outra grande personagem da história. “Ela não é nada objetiva. Vamos construindo e depois reconstruindo (a memória) para uma lógica da nossa narrativa. Inventamos a realidade do passado”, explica o diretor.

De acordo com ele, Quase memória é um filme que deve ser feito na maturidade. “Não é um critério obrigatório, mas fica evidente, quando já se tem certa idade, que a sensibilidade está mais aguçada”, comenta o cineasta, de 86 anos. Seu longa anterior é O veneno da madrugada, lançado em 2005.

O nome de Tony Ramos não surgiu de imediato. A sugestão veio de Janaína Diniz Guerra, filha do cineasta e produtora do longa. Definida a escalação, o diretor teve que encontrar uma brecha na agenda do ator para que ele participasse do projeto. Quase memória é o primeiro filme de Ramos desde Getúlio (2014).

“Quando cheguei para conversar com o Ruy, o roteiro estava finalizado. Disse que não queria lê-lo, pois era a maior alegria trabalhar com ele. Foram cinco minutos de conversa e o resto decidimos marcar na hora dos ensaios”, lembra Tony Ramos, que filmou no fim de 2014.

Tony Ramos, que começa a atuar com o mesmo gestual de seu duplo, Charles Fricks, não fez nenhum laboratório. “Foi cada um na sua ‘trip’, ele mostrando o vigor do jovem, eu já meio alquebrado pela quase memória”, comenta.

O ápice da participação de Ramos ocorre na parte final do filme, quando Carlos, já perto da morte, tem um delírio, transformado num grande monólogo.

“É ali que ele começa a esclarecer as coisas e as interrogações”, afirma o ator, admirado com a maneira como Ruy Guerra filmou a cena. “Foi de primeira, sem nenhum plano de cobertura. Fiquei inseguro. ‘Como valeu?’, disse. Mas ele disse que tinha valido e ponto”, relembra.



Popular

O ator se impressionou com Guerra. “Principalmente com o olhar não blasé que ele teve com o ator popular. Eu mesmo, quando fui convidado, disse: ‘Ruy, como é isso de você chamar um ator de novela?’. Ele me respondeu: ‘Chamei um ator que por acaso é popular’.”

Tanto por isso, Tony Ramos tentou não adotar nenhuma atitude de reverência tampouco expectativa em trabalhar com Guerra. Radicado no país desde o final dos anos 1950, ele dirigiu clássicos da cinematografia brasileira como Os fuzis (1964) e Ópera do malandro (1986).

“Há 36 anos, fiz em Montes Claros um filme com o Carlos Alberto Prates Correia (Noites do sertão, inspirado na obra de Guimarães Rosa), cineasta absolutamente autoral. Fiz Leila Diniz (1987), do Luiz Carlos Lacerda. Tenho mais de 30 filmes na carreira. Às vezes, estou indo para o cinema, para a TV, para o teatro. Deixo rolar. Acontece que a TV te dá tanta visibilidade que você passa a ser muito conhecido. Só que a popularidade advém de muita exposição. Achei bonito o Ruy me dizer que, pra ele, no set havia apenas um ator disciplinado”, conclui Tony Ramos.

OUTRO SET


Enquanto lança Quase memória, Tony Ramos continua às voltas com o cinema. O ator está filmando, em São Paulo, 45 do segundo tempo, longa dirigido por Luiz Villaça. Ele, Cássio Gabus Mendes e Ary França formam o trio de amigos que buscam no passado a solução para seus conflitos. “O título é analogia com o que significa chegar ao limite”, diz Tony.

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