Nem uma única palavra é dita em Motorrad, longa de Vicente Amorim que estreia nesta quinta (1º) nos cinemas, nos primeiros 14 minutos do filme. Mas, até aí, três personagens já entraram em cena, houve uma invasão, um furto (ou dois), uma tentativa de fuga e outra de assassinato, a limpeza de uma ferida carregada de tensão sexual e a exaustiva preparação de uma moto para a prática de trilha.
O fato de ninguém falar nada durante todo esse tempo “foi uma aposta nossa na construção dessa sensação de sufocamento angustiante. Tenho muito orgulho dessa construção”, afirma o diretor. “Imagina só que tragédia seria esse filme se ele fosse tagarela. Nunca conseguiria fazer a exploração que tento fazer da trajetória de amadurecimento do Hugo (Guilherme Prates) e a transformação dele em quem ele sempre foi. Se começo a falar sobre isso, fico com um filme pedante, que vai afastar qualquer pessoa inteligente e o público primário”, avalia Amorim.
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No entanto, sua intenção de filmar no Brasil um longa de terror esbarrou durante décadas “num preconceito muito grande do establishment (cinematográfico brasileiro), que acha que cinema de gênero não é coisa para diretor sério. São coisas comerciais”, diz ele.
Na opinião de Amorim, “terror é onde você vai mais fundo na psicologia dos personagens. Trabalhar o medo do espectador faz com que ele pense no por que está sentindo medo. Não é uma questão de dar susto. O medo é um mecanismo psicológico. Isso, semanas depois, vai apertando teclas no subconsciente do espectador e abrindo janelinhas”.
No caso de Motorrad, o terror brota quando um grupo de amigos faz uma trilha de moto numa paisagem quase desértica – a Serra da Canastra mineira – e se depara, em primeiro lugar, com uma motoqueira que os convida a visitar um lugar “muito mais legal” do que seu destino original. A partir do banho numa piscina natural, o grupo passa a ser perseguido por um sanguinário quarteto de motoqueiros inteiramente vestidos de negro.
Além das cenas de velocidade e perseguição sobre duas rodas, o público verá assassinatos praticados com aquilo que a criminologia define como requintes de crueldade – decapitação, incineração, afogamento e tortura estão no manual daqueles “quatro motoqueiros espectrais que são um monstro só”, conforme define o diretor.
Amorim observa que Motorrad repete a estrutura de Amargo pesadelo, de John Boorman (1972), de O predador, de John McTiernan (1985), de Um barco e nove destinos, de Hitchcock (1944), assim como de títulos de John Carpenter, seu ídolo no terror: “Num ambiente isolado, um grupo se desintegra a partir do momento em que é confrontado com o medo”.
Porém, o longa brasileiro procura empregar essa estrutura “numa situação e num cenário muito originais, que são essas motos na Serra da Canastra”. A ideia era realizar um filme de terror brasileiro que tivesse “uma singularidade”, além de provar “que não precisa ser muito caro”, para se contrapor a “essa noção falsa de que cinema de gênero é muito esquisito, muito doido e muito caro. E não adianta tentar fazer isso no Brasil”, diz Amorim, citando as razões citadas nas negativas que ouviu às suas tentativas prévias de se aventurar nesse gênero.
ARIDEZ A opção pelo cenário da Serra da Canastra contribuiu com o objetivo de “emular a sensação de solidão, de aridez e da natureza hostil como parte do monstro”. A isso se juntou a fotografia de Gustavo Hadba, usando “alto contraste, cores saturadas puxando um pouco mais para o frio e uma forma de filmar com o obturador a 45 graus, o que, na prática, significa que cada fotograma tem uma definição maior, criando uma linguagem visual que se comunique de forma mais estreita com o universo das HQs”, aponta o diretor.
Motorrad tem roteiro de L. G. Bayão e personagens criados pelo quadrinista Danilo Beyruth. Amorim diz que seu longa “foi filmado logo depois do golpe – vamos chamar as coisas pelo nome que ela têm”. E conta: “A gente fez o filme tendo essa sensação de que estava entrando num território desconhecido e terrível, assim como o personagem do Hugo”. A coincidência do lançamento do longa com a recém-decretada intervenção federal no Rio de Janeiro apenas acentua a ideia do diretor de que “não há momento mais propício para falar sobre o medo do que este da política brasileira”.
Amorim afirma ainda que “fazer esse tipo de filme é uma espécie de resposta catártica ao que está acontecendo. Às vezes você começa esse voo sem saber onde vai aterrissar, mas não por acaso você aterrissa no lugar em que aterrissa. Há uma sincronicidade entre o veio autoral e a história”. Na maneira como ele enxerga a história brasileira, “a gente está vivendo um momento muito perigoso de retrocesso e quebra de garantias democráticas, como não acontecia desde Geisel (1974-1979)”. Sua perspectiva para o futuro? “Torço, não com muita expectativa de estar certo, para que haja uma reversão ao menos parcial disso em outubro”.
Abaixo, confira o trailer de Motorrad: