A todo momento, durante o decorrer do filme Com amor, Van Gogh, um personagem brinda ou, ao menos, se distrai com um tantinho de bebida alcoólica. Na verdade, quem sente o efeito do entorpecimento é o espectador. Numa revolução visual que encontra similar no longa Avatar, a animação assinada por Dorota Kobiela e Hugh Welchman é arrebatadora e grandiosa.
Nada menos de 65 mil frames pintados a mão compõem o filme, eleito pelo público a melhor das produções exibidas em 2017 no festival francês de Annecy, o mais importante no segmento das fitas de animação. Este mês, o longa levou o prêmio na mesma categoria concedido pela European Film Academy (EFA), em Berlim.
Com amor..., em cartaz no Belas 1, em BH, demandou uma seleção de pintores: mundo afora, 10% de 5 mil artistas candidatos foram testados e 125 aprovados. Além do treinamento, houve necessidade de inventar um método de produção para cinema.
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O enredo de Com amor, Van Gogh relaciona cartas e pinturas do holandês Vincent van Gogh (1853-1890). Houve um momento em que 132 quadros estavam atrelados ao roteiro. Mas, claro, cortes se fizeram necessários. Foram seis anos até ajustar todo o processo.
“Surpreendi-me a respeito do quanto as pessoas desconheciam a história de Vincent. Ele é o mais popular dos pintores, mas elas sabem apenas que enlouqueceu, cortou a própria orelha e se matou. Para muitos, Vincent foi um gênio louco que pintou com cores intensas, vendidas a preços muito altos hoje em dia, mas não vendeu nenhum quadro na época da vida empobrecida. Para mim, ele não foi pobre e tampouco era louco. Estava alcançando o reconhecimento ao final de sua existência. Vendeu pinturas por preço razoável ainda em vida”, garante Welchman.
Estúdios poloneses e gregos acolheram os pintores que conceberam o primeiro longa encenado por atores e completamente pintado a mão. A intensa inquietação do artista holandês foi totalmente remontada a partir de ladrilhos: a cada visita do cicerone do enredo (Armand, filho de um carteiro, papel de Douglas Booth), esmiuça-se o paradeiro de Van Gogh (Robert Gulaczyk), ainda anônimo.
INFÂNCIA “Criança, Vincent não era muito dotado artisticamente, comparado a gênios do seu porte como Da Vinci, Munch, Mozart ou Chopin. Ele batalhou contra a depressão ao longo da vida, mas as coisas pareciam encaminhadas quando morreu, muito melhores do que 20 anos antes. Ele estava com melhor saúde, parou com os porres sistemáticos, pintava obras-primas em alta velocidade, teve um sobrinho batizado em sua homenagem. Tudo isso além de ter o reconhecimento de seus pares pelo extraordinário talento. Vincent foi citado por Monet e Toulouse-Lautrec”, pontua Welchman.
Em 2008, Welchman ganhou o Oscar de melhor curta de animação (com Pedro e o lobo), parceria com Suzie Templeton. Agora, ele e Dorota Kobiela criaram um filme diferenciado na textura das imagens. Adotadas, assimiladas (pelos cineastas) e propostas em viés de releitura, as obras do pintor holandês – A noite estrelada (1889), Campo de trigo com corvos (1890) e Terraço do café à noite (1888) – se fazem protagonistas, transubstanciadas como razão de ser de Van Gogh. Verdadeiros moldes da atmosfera do filme, elas estão em pé de igualdade com as cartas do mestre.
“Ao ler todas as cartas, fiquei perplexo com a escolha dele para pôr fim à vida. Isso permanece como mistério. Remexemos nesse mistério, dissolvendo questões nunca exploradas em outros filmes sobre Van Gogh”, diz Welchman.
TRÊS PERGUNTAS PARA: Dorota Kobiela, diretora
1 Onde você, uma artista, sentiu a maior inspiração de Van Gogh?
No espírito dele, em sua persistência e em seu belo coração. Tinha, entretanto, limitações na hora de se expressar. Teve problemas na interação com as pessoas. Isso era digno de muito pesar para ele, porque amava o mundo e as pessoas. Ele buscava maneiras de se relacionar. Aos 20 e poucos anos, Van Gogh havia se engajado, com fracassos, em quatro carreiras. Com paixão, seguia nas tentativas. Aos 27, optou pela arte. Aos 29, começou a pintar. Oito anos depois, morto, havia transformado definitivamente o cenário das artes. Ele sempre será uma inspiração: inteligente, sobremaneira, além de sensível e passional. Com ele, cultivo um aprendizado: apesar dos contratempos, nunca enverede pelo cinismo. Como Van Gogh disse, o que é feito com amor é bem-feito.
2 Como o filme aborda a vida tão rica do artista holandês?
O enfoque sempre foi nos últimos dias dele, o período em Auvers-sur-Oise. Enfatizamos as pinturas daquela fase. Reforçamos as pessoas próximas a ele. Elas contaram como foi conhecê-lo. Cheias de vida, na animação, as pinturas falam por Van Gogh. Destacamos Adeline Ravoux (interpretada por Eleanor Tomlinson), filha dos donos do albergue em que Vincent se hospedou e onde morreu; o doutor dele (Gachet); e a filha do doutor, Marguerite (Saoirse Ronin). Havia especulações sobre um possível romance dela com Vincent. A ênfase no doutor Gachet é extraordinária. Vincent quis pintá-lo como “a expressão do coração partido dos nossos tempos”. No filme, Gachet rende um desenho garimpado em pesquisas, retratado com ares volúveis.
3 Quais foram as pinturas mais referenciais no longa?
No caso das paisagens, Campo de trigo com corvos (1890) obrigatoriamente tinha que estar na fita. Tanto pela associação imediata com a morte de Van Gogh, por causa dos louvores captados por amigos, passado o funeral dele, quanto pela conexão com o clássico filme Sede de viver (com Kirk Douglas, de 1957). Recorremos a pinturas feitas em Arles, produção prontamente associada ao estilo criado por Van Gogh. O café à noite na Place Lamartine, Noite estrelada sobre o Ródano, Terraço do café à noite, A casa amarela, Quarto em Arles, The harvest e The sower – todas as obras foram obrigatórias no filme. Precisávamos de um personagem em Arles, ligado a Vincent, que empreendesse viagem rumo ao Norte em busca de respostas para o paradeiro dele. Primeiramente, pensamos em Joseph Roulin (papel de Chris O’Dowd), o carteiro e amigo de Van Gogh. Em seguida, optamos pelo belo filho dele, Armand Roulin, retratado num dos melhores trabalhos do artista. É ele quem guia o espectador.