Compositor hábil para tocar almas das mais variadas classes sociais, Reginaldo Rossi foi um exímio contador de histórias. Com timbre inconfundível e cadência musical mesmo nas conversas, conduzia o ouvinte por meandros de causos perspicazes, com ares pitorescos trançados a reflexões sociais, exaltação do povo e críticas ao preconceito. As entrevistas, repletas de tiradas, jargões e trechos picantes, são pérolas, uma das quais serve de fio condutor para o documentário Reginaldo Rossi, meu grande amor, dirigido por José Eduardo Miglioli com produção-executiva de Carol Carvalho, disponível na plataforma Globo Play.
A deliciosa conversa com o jornalista Xico Sá e o cineasta Paulo Caldas foi realizada em 2008 e regada a doses de “uísque do mundo inteiro”, conta Xico, para o roteiro de um musical com histórias de amor baseadas nas canções dele. Estava totalmente inédita e por si já vale um especial. Do material bruto de aproximadamente duas horas, foram pinçados 15 minutos, os quais costuram as entrevistas com amigos, parceiros musicais e artistas influenciados por ele, além das cenas ficcionais interpretadas por Roberto Rossi, de 39 anos, ator e filho do Rei do Brega, falecido em decorrência de um câncer de pulmão, em 20 de dezembro de 2013, aos 70 anos.
O roteiro, assinado por DJ Dolores, resgata passagens da juventude, a exemplo dos ensaios autodidatas ao violão e dos encontros musicais com a prima, estudante de acordeom (vivida por Karoline Maciel), e propõe um encontro – em um bar, claro – entre as versões jovem e adulta do autor de clássicos como Garçom e A raposa e as uvas, Leviana e Recife, minha cidade.
A infância do garoto de origem humilde criado por três “mães” é narrada por ele próprio e pela família. Os tempos de fã de rock, admirador da Jovem Guarda e membro de conjunto musical são lembrados pelos companheiros da banda The Silver Jets e pelo escritor Raimundo Carrero.
Ícones do movimento juvenil, Eduardo Araújo, Sylvinha, Rosemary, Renato Barros (compositor da cômica Rossi The King) e Michael Sullivan defendem a relevância e o alcance mercadológico, enquanto tiram do baú memórias afetivas e passagens hilárias, pontuadas também pelo secretário Beto, criado como filho por Reginaldo, e o empresário Sandro Nóbrega. Grata surpresa é a fala de Marcelo D2, amizade germinada após os dois perderem um voo embebidos por álcool e conversas no aeroporto.
A homenagem feita à família conta com a poética atuação de Roberto Rossi. “Não é uma cinebiografia.
Ausências são sentidas, algumas impossibilitadas por choque de agendas, como Roberto Carlos, Ivete Sangalo e Ximbinha, interessados no projeto. Contemporâneos como Odair José, Amado Batista, Fernando Mendes, Agnaldo Timóteo e Adilson Ramos não aparecem. A exclusão de artistas locais do brega – especialmente Michelle Melo, a quem Rossi apelidou Rainha do Brega – inconscientemente reproduz um preconceito contra o qual o homenageado sempre lutou.
Em vez dos bregueiros criados e valorizados no subúrbio recifense, foram escolhidos Lúcio Maia, da Nação Zumbi, e Otto (em frases emocionadas e no dueto no Altas horas, de Serginho Groisman) para ilustrar a nova geração musical de Pernambuco. A paraense Gaby Amarantos também está lá.
Um dos mais vendáveis artistas em seu auge, em 1980, Rossi tem presença cativa em festas, mas não consta nas prateleiras de discos – todos fora de catálogo. Intérprete de profundos sentimentos com a genialidade da simplicidade, é escanteado na literatura e filmografia documental. O Rei do Brega, acompanhado por uma multidão de súditos na despedida, merece homenagens. Longe de ser uma cinebiografia definitiva e com formato mais próximo a especial de televisão que de cinema, Reginaldo Rossi, meu grande amor é o primeiro grande tributo a um músico que marcou época e teve alcance em todas as classes e rincões do país. Emocionantes, os 86 minutos, com cerca de 30 entrevistados, congregam o espírito leve do Rei do Brega e boas histórias.
Três perguntas para...
José Eduardo Miglioli
diretor
Como foi o primeiro contato com Roberto Rossi?
No processo de produção, em novembro, fui apresentar o filme Chico Science: Um caranguejo elétrico, no Mimo, no Rio de Janeiro, e o chamei pra ver. Depois, saímos e estabelecemos uma relação bem bacana. Aí, as coisas começaram a tomar forma. O DJ Dolores trouxe essa contribuição bastante significativa, pois ele achava superimportante desmistificar o Reginaldo Rossi simplesmente como ícone do brega e insistiu para a gente trabalhar o início da carreira dele, mais rock’n’roll.
Por que inserir cenas ficcionais, interpretadas pelo próprio filho de Reginaldo Rossi?
Para variar, a gente esbarrou com o problema da falta de cultura de preservação. São 20 anos de história do cara praticamente sem imagem.
Por que não há cenas do enterro, assim como em Chico Science: Um caranguejo elétrico?
Essa escolha tem explicações físicas e metafísicas: estou contando a história de quem? Francisco França e Reginaldo Rodrigues ou Chico Science e Reginaldo Rossi? Quando escolhi contar a história dos artistas, estou contando a história de seres imortais. Não cabe a cena de um velório, porque o cara não morreu. Acredito que eles estão vivos. Eles estão aí. Ganhei um livro, O lobo e a lagoa, de Lula Côrtes, e há uma frase que define bem no fim: “O homem só morre quando a última pessoa no mundo esquece que ele existiu”..