'O legado de 2013 é um enigma', diz João Moreira Salles em entrevista ao EM

Documentarista acredita que a espontaneidade, a descrença em instâncias mediadoras e a rápida diluição pela ausência de articulação unem o maio de 1968 na França e as grandes manifestações recentes no Brasil

Carlos Marcelo
- Foto: Calé Divulgação

Há uma imensa documentação, em livros e filmes, sobre os acontecimentos de 1968 no mundo, em especial os da França. O que o levou a fazer No intenso agora? O tema ou a descoberta de uma forma de narrá-lo?

Boa pergunta. Acho que não foi nem o tema nem a forma de narrar.... A primeira coisa que me levou a querer voltar a fazer cinema foi a questão da alegria. Ser alegre e depois perder essa capacidade. Acho que a alegria, a felicidade é uma espécie de competência; você tem, mas não há garantia de que irá mantê-la. É uma questão de família. Para mim e para a minha mãe.

Ela se encantou com a China?

Sim.
E, à medida que o tempo passou, foi perdendo a capacidade de se interessar pelas coisas. Adulto, eu conheci uma mãe entristecida. A tristeza foi se acentuando e, no fim, ela decide que não vale mais a pena viver. Eu tenho preocupação em relação a isso. Será que vou perder a capacidade de me encantar com o Botafogo, com a vida, com o trabalho? Eu flerto um pouco com essa questão. Já tive episódios agudos de tristeza. Com a minha profissão também, que não sinto ter escolhido, meio que me foi oferecida pelo meu irmão, Waltinho (o cineasta Walter Salles, de Central do Brasil), essas coisas todas fazem parte da minha cabeça.

Como você chegou a 1968?

Comecei a ler sobre aquele período, as memórias daquelas pessoas. Principalmente as memórias dos maoístas, que talvez tenham vivido a maior das rebordosas: eles recusaram maio de 68 por achar que era uma manifestação de meninos brancos e burgueses. Queriam a causa operária, fazer a revolução nascida na fábrica e no campo, seguindo o manual da revolução chinesa. Eles sentiram que perderam o bonde da história, falavam disso com grande melancolia. Das memórias dos maoístas passei para as memórias dos outros: Cohn-Bendit, dos anarquistas, stalinistas, todas as memórias dos que viveram aquele período intensamente. E a pergunta aflorou: como sobreviver ao fim daquelas três semanas? Não apenas em função das derrotas políticas, mas sobreviver ao fim do sentimento de irmanação, de coletividade, de dissolução do ego. Muitos não encontraram uma resposta à pergunta.
Terminaram desencantados, sem propósito... Poucos encontraram saídas.

Assim nasce o filme?


O filme nasce da vontade de reflexão sobre a intensidade e o desencanto. Escreve-se muito sobre como as pessoas se tornam militantes, escreve-se menos sobre como elas deixam a militância. Sobre o desencanto e o que vem depois dele. Acho que o grande pulo do gato é uma lição do (Eduardo) Coutinho, logo ele que não queria dar lição: é aceitar a vida cotidiana, a vida a volume médio. A vida dos momentos excepcionais, que por definição são raros e fugazes, não se sustenta por muito tempo. Mas é difícil depois que a paixão passa, seja ela a paixão política, erótica, romântica, estética. Sempre passa, é impossível viver na intensidade máxima.

Como converter esse sentimento em imagens?

Essa é a segunda questão.  O filme não existiu antes de eu ler tudo que li, de pensar em tudo que pensei. Mas não tinha imagens do filme. Aí vem a segunda parte, que é a do trabalho de pesquisa: porque o filme seria também sobre material, arquivo, sobre outros filmes.
Por que esses arquivos foram feitos? A reflexão sobre a natureza das imagens passou a ser uma questão. Descobri, por exemplo, que tinha de atribuir algum sentido às imagens dos estudantes franceses. E aí vêm outras perguntas: Como filmar em diferentes regimes políticos? Que tipo de imagem produz uma democracia ou um regime totalitário?. Na França, pelo fato de a câmera tremer pouco e estar perto da ação, isso me indicava que era possível filmar.  Na Tchecoslováquia, as imagens são radicalmente diferentes – você não pode se aproximar da ação. Por que, no enterro do Edson Luís, as imagens me dizem que houve um acerto com as forças da repressão? Porque a câmera está perto, não treme.

E para transformar isso em um filme, como fazer?

Tentando fazer um filme. Entro na edição sem roteiro, sem captação de imagem, há apenas uma imagem captada por mim, no metrô de Paris. Muitas das imagens foram achadas no YouTube durante o processo de edição: um material indicava a existência de um outro material.

Assim como Eduardo Coutinho se permitia não planejar como seriam as filmagens, você estava aberto ao que poderia acontecer na montagem...

Completamente. Uma das possibilidades que No intenso agora me abriu é que toda costura é possível, se você acha que tem algo a dizer. Juntar materiais que nunca foram feitos para conviver, isso foi muito libertador. Estão lá o lado mais histórico do que aconteceu em 1968, em maio em Paris e depois em Praga; uma reflexão sobre as imagens como parte de um contexto político; a tentativa de me reaproximar de minha mãe, de quem eu tive uma relação distante nos últimos anos de vida. Uma relação difícil, muito difícil. E a ideia das pessoas filmadas como símbolos, como indivíduos se transformam em mártires. Quase todos os mortos de 68 são redutíveis a símbolos, são úteis às causas políticas. Isso é um problema sobre o qual queria refletir. Ninguém estava minimamente preocupado no Brasil com Edson Luís, com o drama dele, da família. A tragédia dele não interessa, e sim o que ele representou no momento agudo da repressão.

Há muitos pontos de identificação de 1968 com as manifestações de 2013. Você chegou a pensar em trazê-las para o filme?

Comecei a pensar no filme em 2011. Em outubro de 2012, entrei na ilha de edição com a Laís (montadora). Em junho de 2013, ela estava muito impregnada: às vezes saía da edição, ia para as manifestações. Mas eu estava fazendo um filme de arquivo. Acontece que são vários 68 em 68, muito diferentes entre si. O americano é tão rico, tão complexo, tão cultural que nem sequer entra no meu filme. O do Brasil é muito diferente e o mexicano, que talvez seja o mais importante latino-americano, é marcado pela violência, com mais de 100 estudantes mortos na Cidade do México. O francês tem uma característica bem identificada por (Jean-Paul, filósofo) Sartre: a gente sente falta de um programa, o que vocês querem?. Cohn-Bendit faz a defesa da espontaneidade, daquilo que mais tarde a gente chamaria de horizontalidade, da não-liderança. São pessoas nas ruas exprimindo seus desejos, falando pela primeira vez o que nunca puderam falar. Chegam a dizer: toda pauta política é paralisante. Havia um viés anarquista, uma tentativa de dissolver tudo que é vertical.

Você está se referindo a 1968, mas também poderia ser sobre 2013...


Sim, estou falando de 2013.  Então, pensar sobre 1968 me fez ver 2013 à luz do que eu estava pensando naquele momento. Inversamente, 2013 não me fez mudar o filme porque vi as dinâmicas muito parecidas com 1968: a espontaneidade à frente da institucionalidade, o tático à frente do estratégico, o particular sobre o geral, a negação de qualquer mediação – de partidos, de sindicatos. A desconexão das ONGs, de certa forma cooptadas pelo governo federal. Por causa da proximidade ideológica e que acabaram recorrendo ao dinheiro das estatais, elas perderam a capacidade crítica. As pessoas que saíram às ruas no Brasil em 2013 também tinham o elemento de 68: a descrença absoluta nas instâncias mediadoras. E a diluição posterior, pela ausência de articulação. Aconteceu exatamente isso (na França). E também no Brasil. Eu supus que aquela energia, tão intensa, se diluiria com rapidez.

E qual é o legado de 2013?


É um enigma. Tem legado para todos os lados. A reafirmação dos movimentos negros, de periferia, da assertividade, dos movimentos LGBT, é  consequência de 2013. As pessoas se deram conta de que podiam dizer e se apresentar como militantes das próprias causas, não precisavam mais de instância mediadora. E também apareceram as demandas da direita. Foi a a primeira vez que a extrema-direita pôde se apresentar como tal. Tanto o trans quanto o reacionário se assumiram a partir de 2013. E acho também que o impeachment da Dilma não teria sido possível sem 2013. Alguma mensagem foi metabolizada por procuradores e juízes. Eles perceberam que a representatividade estava sendo colocada em questão. A Lava-Jato já existia, mas era tímida, torna-se muito mais agressiva depois de 2013. O Judiciário se sentiu legitimado no seu desejo de colocar o pé na porta e ser protagonista. Porque havia uma insatisfação com o Estado brasileiro, a corrupção, com os horrores das obras de Copa do Mundo e Olimpíadas.

Você dá a sua visão de acontecimentos que, a partir da Europa, marcaram o mundo. Por quê?

Imaginava que isso seria tomado como um atrevimento, mas esse problema eu não tive. Também era uma questão um pouco militante da minha parte. Todo mundo vem de lá fazer filmes sobre a gente, por que diabos a gente não pode fazer filmes sobre eles? Por que nosso ponto de vista não tem valor quando a gente pensa sobre fatos que não ocorreram no nosso país? Por que a gente é condenado a falar sobre nossa miséria social, que a gente divide com eles, mas não pode ir para lá?

Em alguns momentos do filme, você toma partido.

Sim, eu tomo. Acho que transformar as pessoas em mártires é sempre um problema. As pessoas passam a servir a uma causa, deixam de ser indivíduos.

“Minha mãe teve a curiosidade de ver as coisas de perto”, você diz no filme. Essa também é uma curiosidade sua? Durante Entreatos, por exemplo, com os bastidores da primeira campanha presidencial vitoriosa de Lula?

No processo de Entreatos foi exatamente isso. O impulso foi de produzir documento: tinha um fato acontecendo no meu país que nunca havia acontecido. Como documentarista, eu não posso deixar de tentar registrar esse fato. Esse impulso não significa uma adesão ao projeto político do Lula, mas a constatação de um fato: isso é histórico. Desejo ver de perto. Mas tem várias coisas que podem ser vistas de perto, inclusive material de arquivo. O processo de No intenso agora é de aproximação progressiva com o material: ver e rever. Nos primeiros cinco meses de edição, não havia nada de criativo. Nesse processo, aquela pessoa desconhecida se torna um amigo, depois até parte da família. A gente começa a reparar: olha, os negros estão sempre na periferia do quadro. Em 68, é difícil bloquear uma imagem sem que tenha alguém muito vivo, como se dissesse: ‘Esse é o meu grande momento’. O momento que justifica tudo.

Você mudaria algo em Entreatos (2004)?

Se hoje eu voltasse ao material de Entreatos, seria um filme inteiramente diferente. Não mais favorável ou contrário ao Lula, mas uma reflexão sobre o próprio material. Por que eu filmei daquele jeito? De que maneira eu consegui entrar nos aviões (durante a campanha)? Essas questões, que são fundamentais para o filme existir, não estão tratadas no Entreatos. Estou muito preocupado com a superfície, com o próprio Lula. Agora, não. Seria uma reflexão sobre as minhas decisões na época. Eu teria que incorporar isso.

No intenso agora mostra uma experiência irreversível. Santiago (2007, sobre o mordomo da família Moreira Salles) também foi irreversível, só você poderia fazer...

Você tem razão. Santiago me deu essa experiência. Ficou claro que há filmes transferíveis, outros intransferíveis. Podem ser bons ou ruins. Os filmes intransferíveis dão a sensação de que são uma extensão de você mesmo, e isso tem força. E é difícil voltar a fazer filmes que poderiam ser feitos por outras pessoas. Como Nelson Freire, por exemplo. Claro que seria um filme diferente se feito por outra pessoa, mas estaríamos no mesmo mundo. Contaria a mesma história. Santiago, não. Embora tenha fracassado da primeira vez que montei, a filmagem de Santiago já indica os caminhos do filme que poderá vir a ser. Em No intenso agora, o ato de inventar um filme é maior do que em Santiago. Não há nada necessário: ele só existe porque três pessoas se reuniram numa ilha de edição para ver se essas imagens podiam conversar. Taí o grande risco: tem gente que acha que as coisas não se ligam. Fico triste, mas é compreensível. De toda maneira, foi uma etapa necessária saber que, agora, tudo é possível. Posso pegar material de YouTube, de celular, fotografias antigas, do que for e, se tenho alguma coisa a dizer, eu digo. Pode virar filme. Tudo cabe. E isso é muito poderoso. Abre portas.

“Minha mãe foi feliz na China”, você diz no filme.  E você ficou feliz depois de No intenso agora?

Fiquei. O desvio que tomei para falar da minha mãe foi o mundo em 1968, havia um certo pudor e embaraço de colocá-la na frente. Esse filme me permitiu, de maneira enviesada, entender e me aproximar mais afetivamente da minha mãe. E tem essa questão de ser um filme inventado. De ser um filme muito mais ambíguo do que fui com Santiago. Não gosto de rever Santiago.

Por quê?

Santiago é fácil de mostrar em festivais, a acolhida foi quase consagradora. Mas meu problema é ser um filme com elementos de falsa modéstia, de falsa coragem, vaidoso à sua maneira. Não me arrependo de ter feito, cumpriu o seu papel, mas hoje em dia fico encabulado por isso. O fato de me mostrar como patrão também é vaidoso: expiação de culpa em público me incomoda. É um filme sobre o qual, hoje, tenho reservas.

E No intenso agora?

Esse é um filme mais difícil do que Santiago. Mais arriscado, fica na beira do abismo, no fio da navalha. Estou tendo a coragem de interpretar um evento suprainterpretado na história do mundo. Poucas coisas foram tão pensadas quanto 68, mas dou minha interpretação. Tenho uma certa desfaçatez em esvaziar um pouco o 68 francês, o que a gente escolhe celebrar. O 68 na França foi estupendo: imaginação, poesia... Mas, no fundo, não teve ambição de mudar as estruturas do poder. Não se arriscou. Tem algo da festa, mas não do custo de uma verdadeira revolução. Não rompeu e não teve a ambição de romper.

João Moreira Salles
Nascido em 1962, no Rio de Janeiro

Principais trabalhos


. Futebol (1998, com Arthur Fontes)
. Notícias de uma guerra particular (1999, com Kátia Lund)
. Nelson Freire (2003)
. Entreatos (2004)
. Santiago (2007)
. No intenso agora (2017).