“O encontro de diásporas, num lugar onde antigos escravos eram substituídos por novos escravos, que chegavam sem saber para onde haviam sido levados; uma criança vendida e largada pela família; a ideia desse destino inescapável e a incapacidade de sequer verbalizar para si próprio ou para as pessoas com quem você convive e ama o que está sentindo”, cita Daniela, em entrevista ao Estado de Minas.
Embora se sentisse tocada pelas circunstâncias desses personagens instalados na região do Serro, em Minas Gerais, no ano de 1820 – entre os quais ela dividiu sua atenção “sem a ideia de dar protagonismo ou não protagonismo” a uns em detrimento de outros –, a diretora optou por uma escrita cinematográfica que evita conduzir as emoções do espectador.
“Fiz um filme muito seco em sua estrutura dramática e na decupagem. Não tem trilha sonora. Nenhuma cena é manipulada para que você sinta isso, aquilo ou aquilo outro. Todo som que está ali é o som que esteve ali naquele momento. Toda a música é diegética (faz parte da ação). Não há um travelling mostrando a beleza daquela paisagem”, enumera a diretora, apontando elementos de uma cartilha de austeridade cinematográfica desenvolvida e praticada por expoentes da sétima arte como o dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968).
A “secura” de Vazante é um modo de deixar o terreno dramatúrgico desbastado para que o filme formule sem distrações a hipótese que impulsionou Daniela a criá-lo: “Era possível que o afeto sobrepujasse cultura, tradição, Estado, igreja – todas aquelas forças terríveis que se interpunham entre as pessoas naquela época?”. A pergunta é desenhada na história a partir do apaixonamento de uma menina branca e um menino negro.
Aos 12 anos, Beatriz (Luana Nastas) é entregue pelos pais para ser a nova mulher do tropeiro português Antonio (Adriano Carvalho), que se tornara viúvo a caminho dos 50. O garoto Virgílio (Vinicius dos Anjos) vive na senzala da fazenda de Antonio, de onde vê sua mãe, Feliciana (Jai Baptista), ser requisitada à casa grande para a satisfação sexual do senhor de escravos.
Vazante, que estreia nesta quinta-feira, 09, nos cinemas brasileiros, foi portanto concebido como um filme-interrogação sobre os limites e capacidades do afeto. No entanto, em seu caminho até o lançamento, o longa recebeu indignação e fúria como resposta à sua pergunta – ou ao seu modo de fazê-la.
PROTESTO Em competição pelo Candango no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (15/9 a 24/9), Vazante foi alvo de críticas severas, feitas em tom de protesto, por parte de espectadores que enxergaram nele insensibilidade à condição dos negros escravizados. De acordo com essa interpretação, o longa realimenta as engrenagens do Brasil colonial que retrata, ao assumir o ponto de vista dos senhores brancos, dando a seus problemas status superior aos sofrimentos de quem vive subjugado à escravidão.
Daniela Thomas entende que essa reação veio de pessoas que estão “num processo de luta para reconhecimento de suas qualidades” diante de “um filme que vem mostrar a sujeição” histórica imposta aos negros no Brasil. “Não é fácil. É um lugar muito doído, muito difícil. Dá para entender que é insuportável. Mas é a história de 400 anos deste país. Para uma questão tão em carne viva como essa não vai haver uma resposta simples. Um país tão injusto como o nosso, tão perverso ainda, com tantas questões, tem que, de tempos em tempos, se reavaliar, tentar entender as raízes de toda essa injustiça, dessas distorções de poder, de preconceito. Imagina que o trabalho escravo está em pauta no Brasil, em 2017, e a ideia é relaxar a legislação.
Na opinião da historiadora Mary Del Priore, que atuou como consultora na realização do longa, as críticas à abordagem da questão racial feitas a Vazante padecem da falta de largueza de visão. “Essa argumentação esposa o binarismo que hoje em dia permeia o Brasil em tudo – das discussões políticas às questões de ecologia. Ver a história como dominadores e dominados é esvaziar a possibilidade de cada ator, tanto na ficção quanto na não ficção, ser dono do próprio destino”, afirma.
A autora de Histórias da gente brasileira (Leya) e Histórias íntimas (Planeta), entre outros, diz que “esse ‘coitadismo’ e o ‘punitivismo’ expõem a dificuldade que temos de nos pensar de maneira qualificada, consistente e com conhecimento histórico” e classifica a forma como se deu o debate sobre Vazante no Festival de Brasília de “totalmente inconsistente, porque ele simplesmente ignora o que foi o resultado daquilo que chamou a atenção – o contato do homem branco com a mulher negra. Isso se dava de forma amorosa ou de forma violenta. E o resultado somos nós hoje, uma população mestiça. Somos o resultado desse encontro de corpos. Temos 7% de negros e 45% de pardos no Brasil”.
Independentemente do percurso histórico, Daniela Thomas diz que “o problema é que, no Brasil, existe preconceito de cor e certas pessoas acordam de manhã e têm uma vida muito mais dura por serem consideradas negras. Esse filme, de certa forma, traz à tona coisas muito difíceis de ver. Infelizmente para mim, como cineasta, essa não é a totalidade do filme. Espero que ele tenha uma força muito grande e seja capaz de encantar ainda muita gente.
“A gente discutiu até o tamanho da poeira em cima dos móveis, para você ter uma ideia do preciosismo”, conta. “A indumentária, o mobiliário, o interior da casa, a forma da senzala, a maneira de vestir dos escravos, dos senhores, detalhes do tropeiro” são aspectos que também passaram pelo escrutínio
da historiadora.
É por fidelidade histórica que Vazante não mostra sequer um beijo na boca. “Ela (Mary Del Priore) disse: ‘Jamais! Não fazia parte do repertório’”, conta Daniela. Essa é a razão também pela qual os personagens estão vestidos nas cenas de sexo. “Ninguém fazia sexo pelado. Isso mais inibia do que atraía”, afirma a historiadora, que não poderia estar mais satisfeita com o resultado do longa. “Não tenho dúvida de que se trata de uma obra-prima.”
Abaixo, confira o trailer de Vazante: