Aristides de Sousa, de 30 anos, é morador do Bairro Nacional, em Contagem. Por lá é conhecido como Juninho ''Vende-se'', o que não é novidade para quem já assistiu ao longa A vizinhança do tigre, docudrama dirigido por Affonso Uchôa e roteirizado por João Dumans, que retrata a vida de Juninho e outros jovens daquela periferia. O filme foi vencedor da Mostra Tiradentes em 2014. Se Juninho voltar a ser personagem de alguma cinebiografia, o roteiro terá de contar que, depois daquilo, ele seguiu em frente como ator e foi premiado no 50º Festival de Brasília como protagonista de Arábia (dos mesmos Affonso Uchôa e João Dumans), que ganhou ainda os prêmios de melhor filme, montagem (Luiz Pretti e Rodrigo Lima) e trilha sonora (Francisco Cesar e Cristopher Mack).
Arábia foi inicialmente concebido como um curta, que seria ''uma livre interpretação'' do conto homônimo do irlandês James Joyce, mas ambientado na Vila Operária de Ouro Preto, cidade natal de Dumans, que assina o roteiro – além da direção, ao lado de Uchôa. O projeto inicial ganhou corpo e acabou virando um longa, entre outros motivos, pela possibilidade de incluir Aristides como figura central.
''Começamos a ter uma relação criativa no Vizinhança. A gente se deparou com quão incrível e talentoso o Juninho era. Ainda que fosse documental, ele mostrava um desejo enorme de encenar e, nas últimas cenas, que eram ficcionais, a gente viu que precisava de um filme de ficção para esse cara atuar. Aí coincidiu a montagem do Vizinhança com a criação do roteiro do Arábia. À medida que ele foi encorpando, mais a certeza de que queríamos o Juninho, escrevemos pensando nele como protagonista e ele nos ajudou no processo de criação'', diz Uchôa.
Em Arábia, Aristides interpreta Cristiano, funcionário de uma fábrica de alumínio em Ouro Preto. Um dia, ele sofre um acidente de trabalho e é socorrido pela enfermeira Márcia (Glaucia Vandevald), que pede a um sobrinho para ir até a casa do operário buscar algumas roupas e pertences antes de ele ser hospitalizado. Entre os objetos, o jovem André (Murilo Caliari) encontra um caderno com várias anotações de Cristiano sobre sua aparentemente singela trajetória até então. O filme passa então a contar a história desse trabalhador a partir desses dois eixos narrativos.
A narrativa começa no mesmo Bairro Nacional onde Juninho vive. No entanto, o personagem da ficção acaba saindo dali rumo a um objetivo que nem ele sabe definir bem, além da vontade de se distanciar da falta de oportunidades daquele local. A caminhada de Cristiano atravessa temas importantes do cotidiano, como a ressocialização de ex-detentos, abusos da relação entre patrão e empregado, especialmente no campo, e até mesmo a duplicação da BR-381, cuja obra é um dos ganha-pães que Cristiano encontra em seu périplo.
A jornada do personagem passa pelas regiões de Sete Lagoas, Montes Claros, Governador Valadares, Ipatinga, sempre em diferentes empregos, até finalmente chegar à zona industrial de Ouro Preto, que é o centro da trama.
VILA OPERÁRIA ''Fui nascido e criado em Ouro Preto. Desde o início, tínhamos um projeto que unisse esses universos, que são Contagem, a cidade do Affonso, e a minha. Então, a trajetória do Cristiano reflete um pouco esse percurso. A gente sempre teve a intenção de fazer o filme em Ouro Preto, uma cidade histórica, cheia de igrejas, monumentos e personagens conhecidos, mas que tem a Vila Operária e a fábrica da Alcan a cinco minutos dali, e pouca gente sabe. Para nós, de uma certa forma, Ouro Preto reflete alguns problemas do país em relação à colonização e à escravidão, como se isso pertencesse só ao passado. Mas nos interessava pensar sobre essas injustiças e desigualdades sociais no contexto de hoje, porque é uma história que não se encerra'', diz João Dumans.
Embora coincida com o período de formulação e aprovação da reforma trabalhista, que entra em vigor no mês que vem, o filme prefere tratar a situação do trabalhador brasileiro de uma forma mais ampla, sem foco em um aspecto específico. ''A trajetória do Cristiano tem relação direta com o Brasil dos últimos 15 anos, mas não queríamos laços demarcados com pontos históricos. Mais do que falar sobre CLT e direitos trabalhistas, o filme fala sobre o mundo que vai gerar ações pelo fim da CLT, o mundo que demanda trabalhos mais precarizados e a inclinação dos governos e empresários a pressionar trabalhadores em prol de uma suposta flexibilização em um mundo cada vez mais neoliberal e ditado por instituições financeiras, cuja consequência é a desidentificação das classes trabalhadoras, em vez de ser uma instância agregadora'', afirma Uchôa, lembrando que a produção começou a ser elaborada há mais de três anos.
Responsável por ser o trabalhador no escopo dessa proposta, Aristides Sousa conhece bem a realidade vivida por seu personagem. Nascido na Vila Santa Rosa, Região da Pampulha, em Belo Horizonte, o ator passou por uma infância de privações e próxima da criminalidade. Depois de se mudar para Contagem, ainda na adolescência, ele diz ter trabalhado em fábricas; como entregador de cestas básicas; vendedor de picolé, água mineral, bucha e doces; em empresa de eletrodomésticos e alimentação, entre outros empregos de que nem se lembra.
BRAÇO FORTE Mais do que isso, ele vê uma semelhança clara com seu personagem: ''A gente tem em comum uma fala deles no filme. ‘É esse braço forte e a vontade de acordar cedo, correr atrás da vida e fazer a mudança e a diferença.’ Isso é o que a gente tem em comum. Por isso o Cristiano é um personagem que simboliza muita gente neste Brasil. Fico feliz de ter representado o papel e de hoje poder acordar cedo'', afirma.
A mudança na vida de Juninho, que estudou até a 5ª série e diz ter aprendido quase tudo que sabe por meio do rap, ocorreu em 2009, em sua vizinhança, que ainda não estava nas telonas. ''Um dia, eu estava lá no meu bairro e encontrei o Affonso com uma câmera, filmando. Ainda não sabia quem ele era, mas perguntei o que estava fazendo. Ele disse que era um filme. Então eu disse ‘que massa! Deixa eu entrar nele?''.
De primeira o diretor negou, dizendo que era preciso um teste. Mas quis o destino que, noutro dia, a filmagem fosse cancelada pela ausência de um assistente. Uchôa aproveitou e fez alguns vídeos com Aristides, e logo procurou por ele com um contrato de direitos autorais e um convite. ''Ele me disse: ‘Não te prometo um centavo, mas vai passar numa telona’. E aí eu falei ‘é agora, vou com você até o final'', relembra o ator, sobre o episódio que o colocou no elenco de A vizinhança do tigre e foi sua porta de entrada para o cinema.
Atualmente, Aristides (ou Juninho) se especializa em teatro no Grupo Galpão, a convite de Glaucia Vendevald, sua colega de elenco em Arábia. Fã de Jim Carrey, a quem admira por ser, segundo ele, ''ao mesmo tempo divertido e centrado'', Wagner Moura e Lázaro Ramos, ele pretende seguir no cinema, e não só diante das câmeras. ''Penso em fazer um filme de ação um dia, para dar uma variada nisso que eu costumo chamar de cinema cultural feito aqui no Brasil. Às vezes acho esse tipo de cinema muito lento'', diz o ator.
Além de ter dominado a premiação no Festival de Brasília, Arábia já passou por um extenso circuito de festivais, que inclui Roterdã (Holanda) e Cartagena de Índias (Colômbia), Lima (Peru), Hidalgo (México) e Quito (Equador), tendo também sido premiado como melhor filme nesses três últimos, no Cine Lima Independiente, Cine de América e La Casa Cine Fest, respectivamente. Na semana passada, ele foi exibido na seção Horizontes Latinos do Festival de San Sebastián, na Espanha. A previsão é de que ele entre em cartaz no circuito comercial brasileiro no começo de 2018, com distribuição da Embaúba Filmes em parceria com a Pique-Bandeira Filmes.