Na 68ª edição do Festival de Berlim, em fevereiro passado, surgiu a expectativa de que a chilena Daniela Vega fizesse história como a primeira mulher trans a vencer o prêmio de interpretação feminina num grande festival internacional de cinema.
Vega concorria por sua interpretação no papel-título de Uma mulher fantástica, de Sebastián Lelio, em cartaz em Belo Horizonte (nos cines Belas Artes e Ponteio). O júri preferiu fazer uma escolha mais tradicional, em termos, ao premiar a sul-coreana Kim Minhee, de Na praia à noite sozinha. O filme abre hoje (para convidados) o Indie Festival, em Belo Horizonte, e tem sessão pública na sexta, no Sesc Palladium, às 20h30. O troféu de Minhee em Berlim não deixou de ter sua carga de transgressão.
Em 2015, a bela Kim protagonizou Lugar certo, história errada, seu primeiro longa com o diretor Hong Sangsoo. Tornaram-se amantes e, na Coreia do Sul, o caso provocou a maior sensação. Kim é uma estrela local, Sangsoo, por seu perfil “de arte”, um diretor quase desconhecido. Ele já era casado e deixou a mulher esperando enquanto excursionava pelo mundo com Kim, vivendo seu romance proibido. A ligação não durou muito, mas o diretor e a estrela permaneceram amigos, e ela interpretou Na praia à noite sozinha. O filme coloca na tela o que não deixa de ser a história privada dos dois. O acerto de contas entre uma atriz e seu diretor, de quem ela foi amante. O aspecto “biográfico” é que pode ter seduzido o júri do Festival de Berlim, que preferiu o desempenho de Kim Minhee ao de Daniela Vega. O filme chileno ganhou, de qualquer maneira, o prêmio de roteiro.
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PÉROLA
A programação contempla homenagens e retrospectiva, mas a pérola é a Mostra Mundial, com 16 filmes que refletem o estado da produção independente no mundo. O longa de Hong Sangsoo participa dessa seleção, que também contempla seis autoras, desde a portuguesa Teresa Villaverde, com Colo, sobre o esfacelamento moral de uma família, provocado pela crise econômica, até a estética experimental da norte-americana Sharon Lockhart, uma queridinha da crítica de todo o mundo, em Rudzienko.
Outras duas mulheres têm conseguido ressonância para seu trabalho. A francesa Léonor Serraille ganhou a Caméra d’Or para o melhor filme de cineasta estreante em longas, em Cannes, por Jovem mulher, e a alemã Valesca Grisebach impressiona por sua abordagem do universo dos homens em Western. São todos programas imperdíveis, mas o Hong Sangsoo é especial. Além desse filme premiado em Berlim, o sul-coreano estreou mais dois filmes em Cannes, em maio – The day after e Claire’s camera. Só um Jean-Luc Godard, no auge da nouvelle vague, conseguia manter esse pique de três, quatro filmes por ano. Justamente a nouvelle vague (francesa). Sangsoo só não é o último autor do movimento ativo, no mundo, porque também resiste Philippe Garrel.
Sangsoo é um diretor nouvelle vague pelo método e também pela junção entre arte e vida, que se espelham em seu cinema. Uma curiosidade particularíssima. Na praia à noite sozinha divide-se em três partes e, na primeira, Kim Minhee, como a atriz dentro do filme, está em Hamburgo. Ela almoça na casa de amigos de sua amiga. O casal é interpretado por Mark Peranson e sua mulher na vida. Ele é o editor de CinemaScope, revista que virou referência por seu compromisso – “Expanding the frame on international cinema”. Esse olhar para o cinema internacional, e formas alternativas de produção, é a essência do Festival Indie. (Luiz Carlos Merten, Estadão Conteúdo)
Indie 2017
Mostra de cinema. De amanhã a 27/9, no Cine Humberto Mauro (129 lugares) – Avenida Afonso Pena, 1.537 – e no Cine Sesc Palladium (82 lugares) Avenida Augusto de Lima, 420. Entrada franca. Ingressos disponíveis nas bilheterias dos espaços
30 minutos antes de cada sessão. Programação completa em indiefestival.com.br.
Retrospectiva de um cineasta visceral
Foram-se todos os autores da nouvelle vague – François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Demy, Claude Chabrol. Sobraram Jean-Luc Godard, é verdade, e Philippe Garrel. Quando fez seu primeiro filme, em 1966 – Anémone –, a nova onda, segundo seus críticos, já tinha virado velha. Philippe, filho do ator/cineasta Maurice Garrel e pai de Louis Garrel, também ator e diretor, prosseguiu com o legado do movimento. O travelling como questão de moral, cada filme um convite – “É preciso ir ao cinema para flutuar.”
Um cinema de sensações. Philippe mostrou este ano, em Cannes, na Quinzena dos Realizadores, L’amant d’un jour (O amante de um dia, em tradução livre), com Éric Caravaca e Esther Garrel (sua filha). Quando propõe que o cinema flutue, Garrel está falando em flutuações íntimas. Do amor. Quase todo o seu cinema fala do impasse amoroso, mesmo quando o pano de fundo – maio de 68 – parece dominante, em Os amantes constantes. L’amant d’un jour integra o que muitos críticos consideram uma trilogia. O ciúme, A sombra das mulheres e agora O amante. Três filmes que passam feito romances, os três em preto e branco e de um pontilhismo que evocaria a pintura de um Seurat se ele não fosse tão colorido.
Duas mulheres – uma sobe correndo a escada da escola para encontrar o amante no banheiro. A outra, de mala e cuia, é enxotada de casa pelo ex-amante. Gozo e lágrimas. A garota expulsa vai bater à porta do pai professor, e ele tem uma amante jovem como ela. Houve, este ano, poucos grandes filmes em Cannes. L’amant d’un jour foi um. Visages villages, de Agnès Varda, foi outro. O Indie 2017 promove a retrospectiva de Philippe Garrel, desde A cicatriz interior até J’entends plus la guitare, responsável por sua consagração em Veneza, em 1991, Os amantes constantes, A fronteira da aurora etc. Vai ficar devendo L’amant d’un jour. Nem por isso será menos necessário descobrir esse autor visceral. (Luiz Carlos Merten, Estadão Conteúdo)
TRÊS PERGUNTAS PARA
Francesca Azzi
Curadora do Indie Festival
O que norteou a escolha dos filmes que serão exibidos no Indie 2017?
É um trabalho atemporal. Muitos curadores começam a escolher filmes seis meses antes dos festivais. Nosso trabalho é de um ano inteiro. À frente da Zetha Distribuidora, acompanhamos o mercado de lançamentos, os festivais internacionais. A Mostra Mundial está dividida em dois momentos: novos diretores, que se dedicam ao cinema de arte e independente, e diretores que já acompanhamos.
A mostra traz o trabalho de seis mulheres. Esse destaque foi intencional?
O Indie é produzido por mulheres. Em toda a sua história, foi marcado pelo traço feminino, o que podemos ver na delicadeza e na força. Escolhi os melhores filmes e eles são realizados por mulheres. Colo é um dos melhores que já vi. Valeska Grisebach conta a história sensacional de um alemão que trabalha na Bulgária. Foi um dos melhores filmes que vi em Cannes este ano, inclusive Valeska venceu o Câmera d’Or, a premiação paralela. Os filmes de Sharon são bem artísticos e experimentais. Em Rudzienko, ela mostra a experiência de uma residência num centro juvenil da Polônia. Do ponto de vista da linguagem, propõe uma discussão sobre a tradução. Por isso, alguns trechos não foram legendados. Prevemos certos ruídos com o espectador. Mas é um filme muito legal!
Por que Philippe Garrel foi escolhido para a retrospectiva?
Como é um diretor mítico do cinema francês, tínhamos muito interesse em mostrar a obra dele. Porém, Garrel não é muito comunicável. Como não tem celular, o contato foi difícil, mas não desistimos. A obra tem como característica parecer natural, mas com a preocupação de não ser naturalista. Garrel não explica os personagens. Eles parecem flutuar. A construção é bem diferente dos personagens de novela. Em seus filmes, ele apresenta um universo ao qual estamos acostumados, mas nos mostra isso de outra forma. Dá outro sentido, fugindo do que é previsto e esperado. Garrel escolheu os filmes da retrospectiva, a curadoria ficou por conta dele. Nós só fizemos a produção. E procuramos entender por que ele quis mostrar alguns filmes e outros não.