O culto em torno de David Lynch só veio crescer neste ano, com o lançamento do novo Twin peaks. Vinte e sete anos depois de fazer o mundo se perguntar quem havia matado Laura Palmer, o diretor norte-americano conseguiu criar uma narrativa inteiramente contemporânea – e muito à frente do que a produção televisiva apresenta hoje, assim como ocorreu com a série de 1990 – com personagens e cenários de tanto tempo atrás. É estranho, mas se não o fosse, não seria David Lynch.
O documentário David Lynch – A vida de um artista, que estreia nesta quinta, 31, no Cine Belas Artes, não poderia ser uma narrativa fácil. Projeto que o trio Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm vem trabalhando desde 2012, traz o próprio biografado como um contador de histórias. No caso, a dele própria.
E para os fãs do diretor de O homem elefante (1980), Veludo azul (1986) e Estrada perdida (1997) é bom deixar claro: aqui, o que está em foco é a maneira como Lynch se tornou o artista que é. É um filme sobre sua formação e sua relação com as artes plásticas, que vieram desembocar no cinema. Tanto que a narrativa vai até 1977, quando ele estreia em longas-metragens com Eraserhead.
Lynch, hoje com 71 anos, estava relutante em participar do projeto, afirmaram os diretores. Só que o nascimento de sua filha caçula, Lula, em 2012, acabou deixando o diretor mais flexível quanto a se abrir para um documentário. As filmagens foram realizadas ao longo de três anos. O que está em 1h30min de filme é resultado de 20 longas conversas que os documentaristas tiveram com ele, em sua casa em Los Angeles.
CRONOLOGIA O formato tem até algum convencionalismo. A narrativa é contada de forma cronológica, desde a infância de Lynch. Sua fala é ilustrada com fotos de época e também com suas pinturas e desenhos. São as ideias do artista que fazem com que o documentário fuja do senso comum.
Lynch revela uma infância comum no Meio Oeste, na cidade de Missoula, interior de Montana. Como seu pai, Donald, era pesquisador do Departamento de Agricultura dos EUA, a família Lynch (pai, mãe e três filhos) era obrigada a se mudar sempre. Até os 14 anos, ele viveu em cinco cidades, sempre no Meio Oeste. A vontade, ele admite, sempre foi de ser artista. O cinema foi um desdobramento. Daí a mudança, meio a contragosto no primeiro momento, para a Filadélfia dos anos 1960.
''Filadélfia era uma espécie de Nova York pobre, uma cidade estranha. Uma mulher, que era minha vizinha, cheirava a urina e era uma racista completa. Havia outra que estava totalmente louca'', é uma das falas do diretor ao descrever esse momento de transição. Lynch conversa sempre pausadamente, em meio a baforadas de cigarro. As falas são intercaladas com imagens do diretor pintando, dirigindo ou fazendo coisas banais. Por vezes, suas rememorações não têm uma conclusão, deixando no ar o fim de determinada história que conta.
As dificuldades dos primeiros anos – tanto em sobreviver quanto em descobrir sua veia como artista – trazem alguns dos melhores momentos do documentário. É puro David Lynch o encontro com o pai. Tempos sem se ver, ele, então com 20 e poucos anos, acha uma honra receber a visita de Donald em sua casa na Filadélfia. Tira a então namorada de casa – Peggy Lentz, que veio a se tornar a primeira de suas quatro mulheres – e recebe Donald. No fim da visita, leva o pai ao porão. É ali, em meio a objetos quebrados, animais mortos e outras estranhezas, que ele apresenta ao pai sua arte.
Quando a visita termina, Donald sobe as escadas do porão e, sem olhar para o filho, diz:''“David, acho que você não deveria ser pai''. Lynch se lembra da ironia do episódio. Naquela época, fins de 1967, Peggy ainda não sabia que estava grávida de Jennifer, primogênita de Lynch e hoje diretora de cinema e TV.
Abaixo, confira o trailer de David Lynch – A vida de um artista: