'Como nossos pais' coloca em debate os impasses da família contemporânea

Longa de Laís Bodanzky evita clichês maniqueístas e fala da opressão enfrentada por mulheres de classe média brasileira

Ângela Faria

O conflito entre Rosa (Maria Ribeiro), e a mãe Clarice (Clarisse Abujamra), está no centro da trama de 'Como nossos pais'. - Foto: Priscila Prade/divulgação

Como nossos pais, que estreia nesta quinta-feira, 31,em BH, é um filme de mulher para mulher. Coadjuvante, o homem, pelo menos aqui, deixa de lado a armadura macho-alfa para ver – e ouvir – poucas e boas. Desta vez, a cineasta Laís assumiu também o texto, com a ajuda (e o olhar masculino) de Luiz Bolognesi, roteirista de elogiados longas dirigidos por ela – Bicho de sete cabeças, Chega de saudade e As melhores coisas do mundo.


Feminista, Como nossos pais nasceu da experiência da própria diretora, de 47 anos, ao observar a sua própria geração. Em seu papel mais importante, Maria Ribeiro é a escritora Rosa. Aos 38 anos, ela faz das tripas coração para ser perfeita: cuida da casa (não há empregada naquele apê), cria as duas filhas e suporta a chatice de escrever sobre aço para pagar as contas, pois o salário do marido, Dado (Paulo Vilhena), ativista das causas indígenas, não dá. Ele ganha pouco, viaja o tempo todo e vive longe da família.

Estressada, triste e sobrecarregada, Rosa atravessa profunda crise existencial diante de uma revelação bombástica a respeito da própria identidade. Nas primeiras cenas, parece uma reclamona que se julga desvalorizada pela mãe, a brilhante intelectual Clarice (Clarisse Abujamra), e pelo companheiro.

Habilmente, Laís Bodanzky vai desconstruindo o clichê da ''mala feminista'', da ''faladora'' que se ''vitimiza'' diante da vida. Em poucos minutos (e graças à performance de Maria Ribeiro), a tristeza e a verdade de Rosa se tornam nossas.

Não temos ''mimimi'' algum aqui. A moça encara crise atrás de crise e não deixa a peteca cair. Ela segura a onda do pai – artista plástico adorável e lunático, vivido por um Jorge Mautner luminoso – e, a seu modo, da mãe, econômica em afeto, pródiga em cobranças.

Até quem não suporta a Maria Ribeiro falante do programa Saia justa vai se render a Rosa. Sutil, o roteiro passa longe de estereótipos que cercam a discussão sobre o empoderamento feminino. Os homens não são brutamontes grosseirões. À sua maneira, estão no controle. E haja sutileza no machismo... Todos gente-boa, instalados nas respectivas zonas de conforto diante do futebol na TV, da ''inabilidade'' para tarefas domésticas e do ''171'' para turbinar a vida sexual sem graça. Os atores Paulo Vilhena, Jorge Mautner e Felipe Rocha (Pedro) constroem, com inteligência, nossos rapazes do século 21. Fofos, mas...


REBELDIA Aqui, o ''lugar da fala'' é delas. O bicho pega – mesmo – entre mulheres: o acerto de contas entre mãe e filha; a rebeldia das pré-adolescentes questionando Rosa; o embate da protagonista com ela mesma. O filme é tão centrado no olhar feminino que, até na hora da cerimônia religiosa, não temos padres, mas a monja Coen.

Se Maria Ribeiro transborda, Clarisse Abujamra é magnificamente precisa. A força está na química entre as duas.

O ''sal da terra'' vem das sutilezas do roteiro de Laís e de Luiz, seu ex-marido. Esqueça o maniqueísmo, tão comuns em filmes que mais parecem novela de TV.

Não, a matriarca não é a mal-humorada inteligente e implicante, como parece a princípio. Minuto a minuto, vamos compreendendo melhor esta mulher à frente de seu tempo. Rosa fala pra caramba. E qual o problema? O filme convida os homens a ouvir – mesmo – esposas, namoradas, amigas, irmãs, amantes, colegas... Convida todas elas a questionar o mito da autoperfeição.

O que interessa aqui não é a ''guerra dos sexos'', mas uma questão crucial neste mundo contemporâneo, em que garotas trans se destacam nas novelas. Como reconfigurar a família depois da implosão do modelo patriarcal?

 

ROSA CONVERSA COM O MUNDO ''Como você conseguiu pôr a sua câmera dentro da minha casa?'' A diretora Laís Bodanzky ouviu esta pergunta em uma das sessões de pré-estreia de Como nossos pais. Quando o filme foi exibido durante o 19º Festival de Cinema Brasileiro em Paris, ela se surpreendeu ao constatar o impacto das inquietações da protagonista Rosa junto às francesas, consideradas libertárias, criadas no berço do movimento feminista. O longa venceu o festival. Inclusive, foi vendido para a Turquia e a China, onde o machismo é uma espécie de política oficial de Estado.

 

Por que Rosa fala para o mundo? Laís Bodanzky concluiu que seu filme expõe a opressão feminina comum a todas as culturas, a todas as classes sociais.

Trazer o universo tão pessoal dessa brasileira a público toca o espectador. Veio à tona algo ''invisível'', apesar de milenar. Historicamente falando, é muito recente o levante das mulheres contra o machismo.

 

A propósito, Laís conta que tem ouvido do público masculino: ''Pare de dizer que este filme é para a mulher. É um filme pros homens''. Muitos deles confidenciam: ''Nossa, já fiz tanto isso!''. E confessam nem ter percebido a própria insensibilidade diante das inquietações das companheiras.

 

Numa pré-estreia em BH, um rapaz se disse incomodado com o fato de os personagens homens, ''os vilões'', não segurarem a onda. O pai de Rosa é irresponsável; o marido, um ''descansado'' que deixa tudo nas costas dela. Para Laís, não há maniqueísmo em seu roteiro. Reações assim são exceções, diferentes das que ela percebeu em sessões realizadas na Europa, no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Festival de Gramado, no Rio Grande do Sul. ''Respeito totalmente. Meu filme é uma obra aberta'', diz.

 

''A minha intenção não foi colocar o homem contra a mulher, a mulher contra o homem. A família mudou e a questão é como recombinar as regras'', observa Laís Bodanzky. A ideia é pôr todo mundo pra conversar. Ela conta que, em todos os debates de que participou, vêm à tona depoimentos pessoais, confissões mesmo. Isso é extremamente importante e gratificante, afirma.

 

Aliás, a escolha da família de intelectuais progressistas, de classe média, para protagonizar o filme teve o propósito de mostrar que o machismo e a opressão sentida pelas mulheres são algo comum entre os ''esclarecidos''.

 

Como nossos pais já está inscrito para concorrer à indicação do Brasil para a seleção de longas estrangeiros que disputarão o Oscar. Para chegar lá, é fundamental fazer carreira em festivais internacionais e receber boas críticas internacionais. Aplaudido no Festival de Berlim, em fevereiro, o longa recebeu elogios das publicações especializadas The Hollywood Reporter e Variety, entre outras. No fim de semana, ele conquistou seis Kikitos no Festival de Gramado – melhor filme e direção; atriz (Maria Ribeiro); atriz coadjuvante (Clarisse Abujamra); ator (Paulo Vilhena); e montagem (Rodrigo Menecucci).

 

''A história do filme já nos dá respaldo para pleitear a vaga para brigar pelo Oscar'', conclui a diretora.

 

Abaixo, confira o trailer de Como nossos pais:

 

 

TRILOGIA LAÍS BODANZKY Como nossos pais compõe uma espécie de ''trilogia Laís Bodanzky'' sobre a classe média brasileira e seus impasses familiares. Bicho de sete cabeças (2000) mostra o drama do jovem Neto (Rodrigo Santoro), internado à força num hospital psiquiátrico pelo pai por causa de um cigarro de maconha. O longa provocou o debate (inclusive no Congresso) sobre a criminalização do uso de drogas e a ineficácia das instituições psiquiátricas do país.


Em As melhores coisas do mundo (2010), o universo familiar é visto sob a ótica de um adolescente, coisa rara no cinema nacional. Mano (Francisco Miguez) enfrenta bullying na escola, a descoberta da sexualidade e a traumática crise de sua família quando o pai se assume gay e sai de casa para viver com um rapaz..