Com a missão recebida da família Barreto – os produtores Luiz Carlos, Lucy e Paula – de roteirizar e dirigir um filme sobre João Carlos Martins, o cineasta Mauro Lima foi até a casa do pianista e maestro para conhecê-lo e observar de perto sua rotina. Encontrou um homem que, diariamente, às 5h30, se senta em frente ao piano e ensaia peças que já não é mais capaz de executar à perfeição. Ainda assim, ele tenta. Em seus 77 anos, João Carlos Martins foi submetido a 23 cirurgias. Desde os 8, conviveu com doenças e incidentes graves: “Tumor no pescoço, distonia, acidente, LER, tumor na mão esquerda, lesão no cérebro”, ele cita, em conversa com o Estado de Minas.
Martins dá o nome de “obstinação” à força que o faz seguir sempre em frente e perpetuar sua história com a música, embora hoje ele se defina como “um pianista que perdeu as mãos para o piano”. No longa João, o maestro, que estreia nesta quinta (15/8) no Brasil, Mauro Lima preferiu tratar esse mistério como uma obsessão – divina ou diabólica, o roteirista deixa a dúvida.
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PAI “Ele (o diretor e roteirista) resolveu não desenvolver vários personagens e deixar esses relacionamentos passados concentrados numa pessoa só, ao mesmo tempo, dando a impressão de que fui um pai mais ou menos ausente. Não é verdade. Fui um pai profundamente presente. Mas ele decidiu partir para o princípio de que minha única obstinação era o piano. E é verdade que fico sentado ali com uma coisa meio obstinada”, afirma o maestro.
No longa, a “cena mais doída” para João Carlos Martins é aquela do concerto em Berlim em que o marfim do piano vai se tingindo cada vez mais de vermelho. Enquanto sangrava, o pianista chegou a pensar “se era hora de dizer ao público que não dava mais”, mas foi “até a última nota do concerto, porque é importante ir até o fim de um sonho”. Terminado o concerto e o sonho, o pianista foi internado às pressas com um quadro de embolia e permaneceu dois meses em coma.
Convidado a falar sobre a natureza de sua obstinação e a presença da tragédia em seu destino, o maestro envereda pelos campos da religião e do pensamento filosófico. “Embora seja católico, acredito em reencarnação. Acredito que tinha que passar por todos os problemas de saúde por que passei. Tudo isso, acredito, faz parte do destino. E o destino é como uma flecha. Essa flecha pode ter desvios, mas ela continua lutando para chegar àquele ponto final. Assim encaro a vida.”
Quanto aos “obstáculos da vida”, Martins tem um olhar semelhante à famosa prece de São Francisco de Assis. “Para lidar com os obstáculos que são praticamente intransponíveis você precisa ter determinação e ultrapassá-los. Para lidar com os obstáculos intransponíveis que Deus coloca em seu caminho você precisa ter humildade.”
ORGULHO Humildade não é bem o adjetivo para definir o que o maestro sente diante do filme sobre sua vida. Orgulho é uma palavra que cabe melhor. Orgulho de ver “um filme brasileiro em que temos Bach, Tchaicovsky, Ravel e Villa-Lobos”, cita. A seleção das músicas integrantes do filme foi feita numa longa tarde de audição e conversas entre o maestro e os Barreto. Todas as peças ouvidas na trilha foram gravadas por ele. Nesse ponto o maestro colaborou bem mais que 2% na hora das filmagens.
“Se tem uma coisa que odeio é ver uma cena com um pianista que está claramente dublando. Combinei que só na hora da sincronização eu apareceria nas filmagens. Foi colocado um piano mudo – para o ator realizar a cena – e o som na sala era da minha gravação.” Martins ficou plenamente satisfeito com o resultado, que conseguiu evitar o ‘efeito dublagem’. “Acabei ficando impressionado, porque, quando você vê o filme, você jura que é ele quem está tocando.”
Tendo sua história contada desde a infância até os dias atuais no longa, o maestro é interpretado na tela por três diferentes atores – Davi Campolongo, Rodrigo Pandolfo e Alexandre Nero. Campolongo foi selecionado entre 50 concorrentes e ganhou a disputa sobretudo pela semelhança física com o maestro. “Ele começou a estudar piano há um ano e hoje já está triturando o instrumento. Vai ser um grande pianista”, comenta o maestro. Para o desempenho de Nero, ele reserva um elogio hiperbólico: “Hoje, para eu voltar a ser João Carlos Martins, tenho que imitar o Alexandre Nero”, diz e gargalha.
O humor peculiar do maestro está no filme e em torno dele. “Sempre disse que o ideal para esse filme fazer sucesso seria eu morrer antes da estreia. Agora que estão faltando só dois dias (ele falou com o Estado de Minas, por telefone, na tarde de terça-feira), o pessoal está ficando menos preocupado.” Passado o lançamento de João, o maestro, João Carlos Martins pretende “virar a página” de sua história até aqui e começar um novo capítulo, que consiste em “realizar o sonho de Villa-Lobos de unir o Brasil pela música”.
Ele pretende fazer isso impulsionando a criação de orquestras em cidades brasileiras que tenham entre 40 mil e 50 mil habitantes. A ideia é reunir bandas municipais e músicos de cordas de igrejas evangélicas numa formação de orquestra. Em 4 de setembro, o maestro começa um “curso a distancia de 36 aulas por ano, com acompanhando on-line; eles mandando vídeo, eu visitando as cidades”, segundo descreve. O objetivo é formar mil orquestras em cinco anos.
“Vamos combinar que daqui a cinco anos você me entrevista de novo, porque acho que esse capítulo dará outro filme. Na verdade, vai ser algo grandioso”, propõe ele a esta repórter. Sendo assim, sorte nos próximos movimentos, maestro! Nos vemos no bis.
APOIO DE MINAS
Com cenas ambientadas no Brasil desde os anos 1950 até os atuais e em cidades como Montevidéu, Nova York, Los Angeles, Sofia (Bulgária) e Berlim, todas importantes na trajetória de João Carlos Martins, João, o maestro é uma grande produção. “É um filme que os Barreto lutaram centavo por centavo para fazer, e Minas Gerais teve uma participação essencial”, afirma o maestro. “Para fechar o orçamento do filme, foi a Drogaria Araujo que nos apoiou. Não costumo falar sobre isso, mas Modesto Araujo é uma pessoa que tem um papel muito importante na minha vida”, diz.