Dormir bem não está no topo das coisas que Tony Terranova (Johnny Massaro) sabe fazer, como se descobre no início de O filme da minha vida. Estamos diante de um personagem que sonha acordado neste terceiro longa de Selton Mello, cuja direção é hábil o bastante para mostrar o correr dos dias na vida de seu protagonista cercado por uma atmosfera de ligeiro torpor, próprio do intervalo entre o sono e a vigília.
O fato de a trama ser ambientada nos oníricos anos 1960, com direito a incontáveis baforadas de cigarro, e de Tony ser o tipo de cara que sente o tempo desacelerar quando avista de longe a garota mais bonita da cidade – e seus pés flutuarem ao vê-la um pouco mais de perto – contribuem para dar ao longa uma pulsação condizente com a de quem respira como se suspirasse.
E Tony suspira pelos bons e pelos maus motivos, entre os quais sua dúvida obsedante a respeito da razão que levou seu pai (e seu herói até então) a ir embora, bem no momento em que ele voltou para casa com um diploma de professor recém-obtido. Em torno dessa quebra da imagem ideal do pai se desenha o rito de passagem da adolescência para a idade adulta e se constrói o tema central de O filme da minha vida, que é, sobretudo, um ensaio a respeito de como um menino se faz homem. Mas não um homem qualquer, como se observa na cena da iniciação sexual de Tony. Na cama de uma “profissional”, o menino/homem não tenta fingir-se dono de uma experiência que não tem, mas encontra um modo particular de fazer com que o jogo seja prazeroso também para ela.
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É em seu momento de maior tumulto emocional que Tony, já quase um homem, recebe da mãe um carinho e o conselho “dorme, querido”, numa cena que traz aos olhos daqueles que viram Selton Mello em Lavoura arcaica o eco de Juliana Carneiro da Cunha dizendo ao menino André “acorda, coração”.
PARENTESCO Há ainda pontos de contato entre O filme da minha vida e Lavoura arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001) no fato de ambos compartilharem o mesmo diretor de fotografia (Walter Carvalho), ter a presença do trem (e seu ruído) como elemento dramatúrgico, e um protagonista que narra sua história em off. Mas o parentesco entre os dois longas está principalmente no fato de conterem a assinatura de um diretor interessado em expressar sua singularidade e imune à tentação de aderir ao padrão temático e formal do cinema brasileiro em seu tempo.
Se Luiz Fernando Carvalho ignorou tanto o viés de tese sociológica sobre o país que naquele momento se esperava do cinema nacional quanto o ritmo narrativo prevalente, Selton Mello atreveu-se aqui a passar por cima de modismos temáticos e estilísticos da safra atual para oferecer ao espectador uma narrativa clássica e elegante sobre um conflito íntimo e atemporal.
O filme da minha vida não tem “câmera nervosa” nem grudada ao pescoço dos atores; seus personagens não têm nomes idênticos aos de seus intérpretes; as locações não são “reais”; o roteiro não é colaborativo nem trata de tolerância, sororidade, questão racial, direitos LGBT, a nova conformação da família. O filme também não se ocupa da política, da corrupção e das várias faces da “dívida social” brasileira.
Por sorte, no cenário do cinema nacional, Luiz Fernando Carvalho e Selton Mello não são exemplos únicos de cineastas que trafegam na contracorrente. Apenas na geração do segundo é possível citar as realizações de Matheus Nachtergaele (A festa da menina morta, um longa que sangra a cada cena) e Kleber Mendonça Filho (Aquarius, a ficção que é um documentário sobre sua época) como exemplos de realizadores que de fato têm algo a dizer e sabem fazê-lo.
Em tempo: Selton Mello dedica O filme da minha vida a seus pais. E essa dedicatória soa como uma bela homenagem de um menino artista que aprendeu a ser um homem de cinema.