São Paulo - Soundtrack significa trilha sonora em inglês. Quando o termo é o próprio título de um filme, imagina-se uma sequência poderosa de hits e canções superconhecidas embalando a trama. No entanto, não é isso que acontece no longa estrelado por Selton Mello e Seu Jorge, que estreia hoje nos cinemas, trazendo outros elementos inusitados e surpreendentes.
A história se passa no Ártico, mas foi inteiramente filmada no Rio de Janeiro, com neve importada e computação gráfica, dentro de um estúdio de 1.200 m2 na Barra da Tijuca. Além do título, praticamente todos os diálogos são em inglês, idioma que o fotógrafo Cris (Selton Mello) usa para se comunicar com os cientistas estrangeiros e até com o biólogo brasileiro Cao (Seu Jorge), na estação de pesquisas no Polo Norte. Apenas em uma ou outra conversa entre os dois o português aparece.
Enquanto os pesquisadores analisam variáveis climáticas, Cris procurou a imensidão inóspita e gelada para executar um projeto artístico. Ele pretendia tirar selfies ouvindo músicas específicas – a soundtrack que dá nome ao filme – para depois apresentar as imagens em uma exposição. A proposta soa como algo completamente sem sentido e inútil para a turma que passava meses de privações por ali em nome de suas pesquisas. Por sua vez, Cris também questiona a viabilidade dos objetivos dos especialistas.
As diferenças de propósitos estabelecem alguns conflitos entre o protagonista e os outros personagens, especialmente com o chinês Huang (o dinamarquês Thomas Chaanhing) e o inglês Mark (Ralph Ineson). O sueco Lukas Loughran completa o elenco como o também estudioso Rafnar.
Cinco homens com histórias pessoais diferentes e dramas particulares. As adversidades climáticas e a extremidade das condições de sobrevivência no local impõem uma convivência muito próxima, com o compartilhamento de pensamentos e pontos de vista. Tudo isso faz com que o tema central do filme seja a sensibilidade, tanto em relação à arte quanto na compreensão do outro.
Os responsáveis pela ideia preferem esconder a própria identidade. Oficialmente, o roteiro e a direção de Soundtrack são assinados por 300ml, nome assumido pela dupla de realizadores cariocas Bernardo Dutra e Manitou Felipe, que pouco aparece no escopo midiático. É o primeiro longa da marca que filmou o curta Tarantino’s mind (2006), em que Selton Mello e Seu Jorge têm uma hilária conversa de bar sobre o cultuado diretor de Cães de aluguel.
Segundo Selton, Soundtrack nasceu ali, na primeira parceria entre eles. Nos anos seguintes, Dutra e Felipe e outros envolvidos no projeto, como o produtor Júlio Uchôa, foram à Islândia pesquisar o ecossistema local, que eles pretendiam reproduzir no filme. A ideia inicial era gravar por lá, mas as oscilações cambiais durante os anos de pré-produção fizeram com que desistissem da ideia. “O dólar subiu. Era um risco muito grande. Então resolvemos fazer tudo dentro de estúdio e aí, obviamente, seria no Brasil mesmo”, disse Bernardo, que teve que adequar o roteiro à nova circunstância.
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COMPUTAÇÃO Como praticamente toda a história se passa dentro ou ao redor de dois pequenos alojamentos da estação de pesquisas, com o chão coberto com a falsa neve, coube à computação gráfica terminar de compor o cenário ártico pretendido pela produção, além de criar algumas imagens, como a de um navio quebra-gelo navegando na região. “Se um americano pode filmar Troia, por que não podemos filmar gelo no Brasil?”, questiona o produtor Júlio Uchôa.
Foi uma novidade para o ator principal. “Eu nunca tinha vivido essa experiência. Sou muito amigo do Rodrigo Santoro, e ele faz isso o tempo todo nesses filmes que ele faz fora, como 300, atuando com um fundo verde no estúdio. Para mim foi novo e inspirador, porque, na verdade, a base do nosso trabalho é a imaginação, então quando você está dentro de um estúdio imaginando estar em outro lugar, vive a coisa mais produtiva do ofício, que é imaginar”, afirma o mineiro Selton Mello, que é também um dos produtores do longa, assim como Seu Jorge.
O que poderia ser um limitador acabou agregando valores à realização, na opinião dos diretores. “O lado positivo foi a introspecção dos atores, (o estúdio) virou quase um útero, um portal do tempo, que estava superfrio, com neve, e isso funcionou muito para a dramaturgia. Perdemos alguma coisa importante dos locais e das paisagens. Mas a ideia não era um filme de paisagem, e sim sobre seres humanos, amizades e problemas e vaidades, falando de arte, de música. Casou superbem no final”, afirma Manitou. Durante as filmagens, o ar-condicionado deixava a temperatura em 8º C.
Embora nenhuma canção conhecida esteja incluída na trilha, a música é pontual no filme. As canções que Cris escuta em seu fone durante suas selfies não são ouvidas pelo público, que é obrigado a imaginar a melodia. No entanto, ouvem-se poderosos efeitos, como o som feito pelo navio quebra-gelo durante as madrugadas, e uma série de músicas incidentais.
“Muitas músicas inspiraram o roteiro, queríamos uma trilha visceral, que não só ajudasse a contar a história, mas que fosse a história em si, mais do que fazer uma trilha conhecida, por isso procuramos artistas não tão conhecidos, mas empenhados e fazer seu trabalho, assim como o personagem”, argumenta Manitou Felipe.
* O repórter viajou a convite da Imagem Filmes
CONVIDADOS
Relembre outros filmes produzidos no Brasil com artistas estrangeiros
» Joana, a Francesa (1975), com Jeanne Moreau (francesa) Gabriela (1983), com Marcello Mastroiani (italiano)
» O que é isso, companheiro? (1996), com Alan Arkin (norte-americano)
» Bella donna (1997), com Natasha Henstridge (norte-americana)
» Oriundi (1999), com Anthony Quinn (norte-americano)
» O xangô de Baker Street (2001), com Anthony O’Donnell (galês), Maria de Medeiros (portuguesa) e Joaquim de Almeida (português)
» À deriva (2009), com Vincent Cassel (francês)
» Pequeno segredo (2016), com Fionnula Flanagan (irlandesa) e Erroll Shand (neo-zelandês)
» Meu amigo hindu (2016), com Willem Dafoe (norte-americano)
Três perguntas para Selton Mello, ator
No filme, a sensibilidade está presente de várias formas, tanto em relação ao meio quanto às relações interpessoais. O desenrolar dos conflitos esbarra em questões como a autovalorização em detrimento do outro. Em sua opinião, qual a mensagem de Soundtrack?
Acho que é julgar menos o outro a mensagem. Meu personagem é um artista, um fotógrafo, que vai para um lugar inóspito onde só tem cientistas, e eles se julgam. O artista acha que os cientistas estão fazendo um monte de bobagem, e que o ele faz é genial. Enquanto os cientistas falam: por que esse cara veio aqui tirar foto? Ao longo do filme, ele vai se aprofundando, e eles vão se conhecendo, especialmente em relação ao personagem do Ralph Ineson. Ele vai entendendo a grandeza da ciência, que é uma coisa que vai além, para a humanidade; ele nem estará vivo quando aquilo tiver algum benefício. Ao mesmo tempo, os cientistas começam a perceber a beleza do que ele está fazendo. É algo tão íntimo, tão pessoal que pode tocar talvez poucas pessoas, mas essas pessoas serão transformadas.
Como é sua relação com o personagem Cris? Compartilha as inquietações dele?
Ele é fotógrafo e trabalha com foto e som, e eu também, quando dirijo, mais ainda, já que dirigir é uma expressão audiovisual. Os dilemas são parecidos: o que eu faço é bom? O que eu faço serve para alguém? Serve para mim? Pode salvar alguém? Transformar alguém? Divertir alguém? Entreter alguém? São dilemas inerentes a quem trabalha com arte. Nesse sentido, eu me vejo nele.
Sua carreira tem filmes que tratam de uma cultura muito própria do Brasil, como O auto da compadecida (2000) e Lisbela e o prisioneiro (2004). Soundtrack se passa no meio do gelo, foi filmado em inglês. Como foi isso e o que esse filme brasileiro pode representar lá fora, sendo visto por estrangeiros?
É um filme muito peculiar, fora da curva, não parece com nada do cinema brasileiro. Vamos encontrar parentesco com alguma coisa do cinema europeu. O fato de ser inglês amplia a possibilidade de comunicação mundo afora, e é uma história humana, isso pode ser uma experiência boa de se viver.