Em duas semanas, o cineasta Luiz Carlos Lacerda completa 72 anos. “Sou rápido, não tem frescura comigo. Quero filmar, não posso ficar esperando edital, que às vezes leva cinco anos para sair. Se eu tiver uma década de saúde e cabeça no lugar para trabalhar, está ótimo.”
Bigode, o apelido que ganhou de uns de seus mestres, Nelson Pereira dos Santos, lança hoje Introdução à música do sangue, que estreia em BH no Cine Belas Artes. É seu primeiro longa em 13 anos (desde Viva Sapato!) a chegar ao circuito comercial.
E ele não ficou parado na última década. Dirigiu dois curtas, dois documentários e mais uma longa de ficção, O que seria deste mundo sem paixão?. Somente este último, filmado e finalizado no ano passado (teve première no Festival do Rio), deverá chegar ao circuito. Os outros, de anos anteriores, foram vistos em festivais e mostras.
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Cardoso, que falava com dificuldade por causa de um AVC, deu-lhe, rascunhado, o início e a parte final da história de um casal idoso e uma garota agregada que vivem numa pequena casa de fazenda. A chegada da luz muda a vida de todos.
Bigode tem três filmes sobre Cardoso e sua obra: O enfeitiçado, 1968; Mãos vazias, 1971; A mulher de longe, 2015 e o supracitado O que seria deste mundo sem paixão?, que mostra o encontro dos fantasmas do escritor com outro mineiro das letras, Murilo Mendes. Desde aquela época, não chegou a pensar mais no manuscrito, que ficou perdido, até poucos anos atrás.
Foi durante uma pesquisa na Fundação Casa de Rui Barbosa, que mantém o acervo de Cardoso, que ele se deparou com a velha história. “Não sei se o que ele me deu era uma cópia, mas quando li, aquilo tudo estava ali, inclusive o título, i”, relembra.
Rapidamente, decidiu filmar a história. Conseguiu vários apoios, entre eles o da produtora e empresária Mônica Botelho, do Grupo Energia, um dos patrocinadores do filme, que lhe emprestou sua fazenda, Niágara, em Leopoldina.
É ali que se desenvolve a relação, que ganha tons trágicos, do casal Uriel (Ney Latorraca, em raro papel dramático), sua mulher Ernestina (Bete Mendes) e a jovem Maria Izabel (Greta Antoine), que vive com os dois. A chegada do peão Chico (Armando Babaioff), vai despertar a sexualidade da garota. Simultaneamente, o casal que vive quase em reclusão, assiste à chegada da luz elétrica, situação comemorada por Ernestina e que encontra resistência em Uriel.
Bigode é nome de referência na formação cinematográfica. Há 20 anos, por exemplo, ministra a oficina de realização na Mostra de Cinema de Tiradentes, além de curso, voltado para documentário, durante várias edições da CineOP.
Boa parte da equipe de Música do sangue é mineira. Uma contrapartida exigida por Mônica Botelho foi utilizar, no projeto, mão de obra vinda da região de Cataguases. Produtores, continuístas, figurinistas e assistentes se formaram no projeto Fábrica do Futuro, na Zona da Mata. E outros profissionais foram alunos do diretor nas oficinas em festivais.
O de maior destaque é o diretor de fotografia, o mineiro Alisson Prodlik. Vindo de outros projetos com Lacerda, o ex-aluno da Mostra de Tiradentes recebeu dele um desafio: fazer o filme exclusivamente com luz natural. “Queria correr riscos, saltar de um trapézio sem rede. O Dib Lutfi tirava as telhas das casas e utilizava luz natural. Por que não voltar a esse tipo de utilização da luz brasileira?”, pergunta referindo-se ao fotógrafo, morto no ano passado, que foi um dos responsáveis pela estética do Cinema Novo.
Em Música do sangue, algo semelhante foi feito. Na casinha de colonos que virou a principal locação do filme, Prodlik tirou poucas telhas de cada ambiente. “Ele observou o caminho do sol e disse que, pela manhã, filmaria na sala de costura e no quarto do casal. À tarde, no quarto da garota e na sala de jantar, e no fim do dia, na cozinha”, recorda Bigode.
A música também tem história. A trilha, assinada por David Tygel, traz trechos da música composta por Tom Jobim para Porto das caixas (1963), longa de estreia de Saraceni, com história de Lúcio Cardoso.
Desta maneira, a obra de Bigode continua dialogando com a obra daqueles que lhe foram próximos. “Quero falar da alma humana, a partir de um prisma da realidade brasileira. Na semana passada, fui a um cineclube que estava passando Mãos vazias (seu longa-metragem de estreia). O filme tem 47 anos e ainda é exibido. Para mim, esta é a diferença entre fazer filme e cinema. Eu quero fazer cinema”, conclui.