Ela seguia seu caminho pelas ruas de uma grande cidade, como qualquer outra pessoa.
Ela já havia mostrado seus superpoderes em Batman vs Superman: A origem da justiça, produção cinematográfica mais cara (US$ 250 milhões) da DC Comics até hoje, salva de um fracasso justamente pela presença da Mulher Maravilha na trama, na opinião de muitos críticos e fãs. O sucesso da personagem interpretada pela israelense Gal Gadot aumentou a expectativa para o longa de US$ 120 milhões, que é o primeiro protagonizado por uma heroína dos quadrinhos no mercado dominado pelas gigantes Marvel e DC.
O filme conta a origem da mulher mais famosa das HQs, a princesa Diana, da Ilha de Temiscira, povoada apenas por guerreiras amazonas e totalmente protegida da presença de qualquer homem por uma espécie de cortina interdimensional criada por Zeus, o deus máximo da mitologia grega. A narrativa mostra desde a infância de Diana e seu sonho de ser uma guerreira até o começo de sua vida adulta, quando durante os treinamentos ministrados por sua tia Antíope (interpretada por Robin Wright, a Claire Underwood no seriado House of cards), ela descobre ter poderes maiores do que imaginava.
Em Mulher Maravilha, o destino de Diana muda quando um avião militar rompe a barreira mística e cai na Ilha de Temiscira, com o piloto inglês Steve Trevor (Chris Pine) a bordo. Os soldados alemães, que o perseguiam, acabam entrando no território, dando origem a uma batalha.
A heroína chega ao mundo ''civilizado'' com seus emblemáticos escudo, braceletes e o laço da justiça. Acostumada a uma vida livre, onde as mulheres eram soberanas, o primeiro inimigo que ela defronta é a própria sociedade, excludente e desrespeitosa com o sexo feminino. Ironias em relação ao machismo, contextualizado no começo do século 20, mas atuais até hoje, são constantes nos diálogos de Diana com Trevor, que tenta conduzir a jovem por Londres sem que ninguém note sua presença, antes de cumprir a promessa de levá-la ao campo de batalha.
CURVAS
Criada em 1941 pelo psicólogo e escritor norte-americano Willian Moulton – apoiador das causas feministas que mantinha uma relação poligâmica estável e consensual com duas mulheres, Elizabeth Marston e Olive Byrne –, a personagem ganhou versões nos quadrinhos e na TV. Em várias delas, a heroína aparece com decotes enormes, traços que chamam a atenção para suas curvas, entre outras formas de sexualizá-la, embora a ideia original de Moulton fosse uma figura empoderadora para as crianças. No ano passado, a escolha da Mulher Maravilha como embaixadora pelos direitos femininos foi alvo de protestos por parte de grupos feministas, que a consideravam apenas ''uma mulher branca, de proporções inatingíveis, dentro de um maiô''. O grupo recolheu 45 mil assinaturas em uma petição on-line e a escolha das Nações Unidas foi revogada.
Se a trama é conhecida por muitos fãs, ficava a expectativa sobre como a personagem seria representada. A cena em que a pequena Diana acompanha o treinamento das guerreiras amazonas é um dos pontos altos do filme. Mostra que a luta não é coisa de meninos, como difundido no imaginário popular. Uma menina pode se interessar por equitação, lutas e tantas outras tarefas, desenvolvendo ao máximo a expertise.
Sobre o vestuário, a personagem aparece com trajes que não mostram tanto. Desta vez, ela não está de colante, mas de armadura, como uma guerreira deveria estar. Em sua chegada à capital inglesa, a personagem brinca com o vestuário feminino da época, extremamente limitador de movimentos e desconfortável, como o espartilho. No entanto, o que não se pode deixar de notar é como a Diana atende aos padrões de beleza.
IMAGINÁRIO
Um pano de fundo é a existência da Ilha das Amazonas, uma sociedade somente para as mulheres. Muitos homens se assustam em pensar num mundo em que não poderiam nem sequer estar. No entanto, quando Diana chega a Londres, fica evidente como os homens construíram um mundo só deles e para eles. As mulheres tiveram que lutar, como literalmente fez a Mulher Maravilha, e ainda brigam para ter representatividade e protagonismo.
Gostem os fãs de quadrinhos ou não, o fato é que a questão de igualdade de gênero não é um adendo. É das principais agendas do século 21 em que a Mulher Maravilha ressurge. É bem verdade que ao longo desses 76 anos, desde a sua aparição nos quadrinhos, esta heroína nunca deixou o imaginário de homens e mulheres. No Brasil, para ver a importância dela na concepção do que é o feminino, basta circular por um bloco de carnaval de qualquer cidade.
Arriscamos dizer que isso ocorre porque, em sua gênese, a Mulher Maravilha traz a dualidade: é a amazona destemida, que luta e enfrenta perigos – por anos desafios tidos como do mundo masculino –, mas consegue se manter sensual no uniforme que evidencia as curvas e o cabelo, milimetricamente ajeitado. A ambiguidade pode ser explicada por ser uma personagem criada por um homem. Mas a perpetuação do mito, sem a menor sombra de dúvida, ocorre porque ela faz sucesso não apenas no imaginário masculino, mas também entre as mulheres, que, de alguma forma, se projetam nela.
Para fazer jus à ideia do protagonismo feminino, a direção também é de uma mulher, Patty Jenkins, a mesma do filme Monster – Desejo assassino (2004), que rendeu o Oscar e o Globo de Ouro por atuação principal a Charlize Theron. No entanto, o roteiro de Mulher Maravilha é assinado por Allan Heinberg e produzido por Zack Snyder, diretor de Homem de aço (2013), Batman vs Superman (2016) e de Liga da Justiça, que será lançado em novembro deste ano e que também contará com a Mulher Maravilha.
Heroísmo diário
O Estado de Minas escalou um repórter que acompanha o universo dos quadrinhos e uma repórter que segue o debate sobre igualdade de gênero para estabelecer diálogo sobre a representação da Mulher Maravilha. Na conversa, uma questão que sobressai é quem são as mulheres maravilha do cotidiano, mostrando como atuam, em suas funções para salvar o mundo.
Estrelam a produção do EM as mulheres maravilhas Larissa Ribeiro Borges, de 20 anos, estudante de engenharia que criou a WorkingGirl, empresa especializada em pequenas reformas domésticas; Maria da Glória Álves dos Santos, de 53, gari, que dedicou 22 anos à limpeza urbana; e a médica intervencionista e reguladora Giovana Ferreira Zani Gonçalves, de 42, que há 12 atua no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Contagem e, há 10, no de Belo Horizonte. A rotina delas mostra que atos de bravura não são comuns apenas a Diana. Por trás do uniforme laranja de Glória, do macacão azul de Giovana ou da camisa xadrez de Larissa, temos os braceletes, a coroa dourada e o laço da justiça. Sim! Elas são maravilhosas e você pode conferir no vídeo.
''Atender somente às mulheres é uma forma de dar segurança para elas, que não terão que ouvir uma piadinha, e para mim própria, que também não vou ouvir uma. Mulher se sentir segura é muito bacana. É um salvamento cotidiano''
. Larissa Ribeiro Borges,
de 20 anos, estudante de engenharia, que criou a WorkingGirl, que oferece serviços domésticos exclusivamente para mulheres.
''A limpeza urbana é importante para BH e para qualquer cidade, mas a gente encontra muito preconceito na rua. Pessoas que nos chamam de lixeira, cheirosa. Sempre briguei contra isso. Lixeira é onde você bota o lixo. Sou gari''
. Maria da Glória Alves dos Santos, de 53 anos, gari, que dedicou 22 anos à limpeza urbana
''Tenho uma função que lida com a razão. Mas algumas situações mexem muito com o sentimento. Tive gêmeos, e em todas as ocorrências que envolvem criança, preciso ter muito autocontrole''
. Giovana Ferreira Zani Gonçalves, de 42 anos, médica e reguladora do Samu Contagem e Belo Horizonte