Os telefones da redação do Estado de Minas tocavam insistentemente naquele 1º de julho de 1994, sexta-feira de muito trabalho e ansiedade no Brasil com o lançamento do real, àquela época mais uma promessa de pôr fim à hiperinflação. O custo de vida havia sido avassalador em 1993, ao subir 2.477%, algo fora do alcance das desastrosas experiências anteriores de estabilizar a economia, envolvendo congelamento e tabelamento de preços, além do confisco da poupança. Do outro lado da linha, os leitores que ainda desconfiavam da conversão dos salários na moeda virtual criada em fevereiro, a Unidade Real de Valor (URV). Tentavam entender como seria a vida nova para o bolso. Era o primeiro dia de mais uma moeda, depois da complexa implantação da URV e de certa sensação de alívio, claro, com a inflação cortada bruscamente.
A peleja dos brasileiros, contudo, passou despercebida do script que levou para o cinema os bastidores da criação da moeda que permitiu ao Brasil entrar na era de estabilidade monetária experimentada nos últimos 23 anos. A proposta de Real – O plano por trás da história, do diretor Rodrigo Bittencourt, que estreia nesta quinta-feira, 25, concentra-se nos gabinetes. Falta ao filme o olhar da população, naquele momento já sacrificada por tentativas malsucedidas de debelar a inflação – os planos Cruzado e Collor.
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A história de Bittencourt é narrada do ponto de vista de ministros e deputados que almejavam subir degraus do poder às custas do sucesso de uma proposta de controle dos preços, de um presidente que buscava melhorar sua popularidade e do grupo de economistas notáveis escolhidos para a tarefa de construir o programa. Todos fechados em suas salas na companhia da fria leitura dos números.
Até aquele novo plano econômico, a rotina das famílias era tentar esticar o dinheiro que sempre corria atrás da inflação. Nos supermercados, preços chegaram a sofrer ajustes diários, até mais de uma vez por dia, o que transformava a máquina remarcadora no grande vilão da temporada. Era preciso estocar comida assim que o salário chegasse ao bolso. Nos postos de combustíveis, a cada semana se pagava mais pela gasolina. As aflições dos brasileiros praticamente não foram levadas em contas na trama.
MALAN
No filme de Rodrigo Bittencourt, o jeito economista de ser dos criadores do Plano Real, chefiados por Tato Gabus Mendes, no papel de Pedro Malan, domina o enredo, com poucas janelas para o questionamento daqueles dias difíceis para a população. Parte dessa reflexão é feita por Cássia Kiss, na pele da jornalista Valéria Vilela, em áspera entrevista concedida pelo economista e ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, interpretado por Emílio Orciollo Netto.
O longa se baseou no livro 3.000 dias no bunker – Um plano na cabeça e um país na mão, do jornalista Guilherme Fiuza. Franco é o protagonista da história contada no cinema, opção arriscada de um enredo que simplesmente tratou como meros coadjuvantes os economistas Persio Arida (Guilherme Weber), André Lara Resende (Wladimir Candini), Edmar Bacha (Giulio Lopes) e o próprio Pedro Malan. O foco em Gustavo Franco adicionou um caldo picante à trama “seca” da criação do real, como se coubesse na numeração perfeita de um economista, mas absorveu em excesso uma história que foi além de arrogância e das brigas que ele comprou pela nova moeda como a idealizava.
A personalidade do autoritário ex-presidente do Banco Central por 12 dias é construída logo nas primeiras cenas. Liberal, defensor de um ajuste fiscal de absurdas proporções, Franco, com toda a sua arrogância, angariou a antipatia dos críticos do neoliberalismo, desdenhou do então presidente da República Itamar Franco (em sensacional interpretação de Bemvindo Sequeira) e desafiou o chefe principal, o então ministro tucano da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, interpretado por Norival Rizzo.
THATCHER
O risco de colocar Franco, uma Margareth Thatcher dos trópicos como é citado, em primeiro plano resultou em transformá-lo num defensor cego do real, que abusa de bravatas nada identificadas com a realidade que o país viveu. ''O momento em que o vira-lata vira pedigree. Este é o (plano) Real'', diz Franco, que, no filme, chama Itamar Franco de ''aquele mineiro topetudo'' e aprova a frase destacada: ''O Congresso vai ter de aprovar o plano sem sacar que nós estamos acabando com a mamata''. Fica o sentimento de que a narrativa encampou uma leitura parcial sobre o plano.
Se o mérito de ter estabilizado a inflação precisa ser reconhecido, estranha a simples menção no filme ao brutal ajuste das contas públicas para abrir o caminho da nova moeda, representado no corte de mais de 5 trilhões de cruzeiros reais (moeda vigente de agosto de 1993 a junho de 1994). Da mesma forma, não se discute o mal que a manutenção do câmbio forte como o dólar fez ao país, quase que por um capricho de Franco, que não acreditava nos efeitos que isso trouxe ao Brasil nas crises do México, Ásia e Rússia.
O consumidor comprava importados a preços mais baixos. Contudo, a manutenção do real no mesmo valor do dólar de forma artificial contribuiu para derrubar a hiperinflação, mas afetou as contas externas do país. Isso obrigou o Brasil a recorrer a novos empréstimos ao Fundo Monetário Internacional.
CRÔNICA DOS VENCEDORES
Depois do lançamento do real, o então presidente FHC teve que lidar com a renegociação das dívidas dos estados, e um país onde empresas acostumadas a se manter com o dinheiro no overnight (mercado financeiro que garantia renda diária) para lidar com a inflação levaram um baque até se adaptar à queda da inflação.
O polêmico Programa de Estímulo à Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) financiou o saneamento dos bancos estaduais – em Minas, o Credireal e o Bemge – para que fossem privatizados. Tudo isso ao custo de bilhões. Valendo-se do sucesso do Real no controle dos preços, FHC teve apoio suficiente do Congresso para as mudanças. De fato, a inflação que caminhava para 815% em 1994 baixou a 6% naquele julho de 1994.
Real – O plano por trás da história, no entanto, deu mais espaço aos discursos liberais de Gustavo Franco e a seus desentendimentos com a mulher Renata (Paolla Oliveira) do que ao confronto dentro da equipe que criou o plano. A impressão é que optou-se por narrar o lado vencedor do plano de estabilização.
Persio Arida, que junto de André Lara Resende idealizou duas moedas com o objetivo de derrubar a inflação – uma forte e não indexada equiparada ao dólar; e outra contaminada pelo galope do custo de vida e indexada, que desapareceria –, desejava liberar o câmbio para que ele flutuasse e assim ajudasse a indústria e o país a se desenvolver.
Franco achava que desvalorizar o real seria sinal de fraqueza. Depois que Arida saiu vencido na disputa pouco explorada no filme, e foi substituído na presidência do Banco Central com o empurrão do companheiro de equipe, a desvalorização do real frente ao dólar foi inevitável em 1999. Quem acompanhou aqueles meses complexos para o governo Itamar Franco deve estranhar o certo desprezo do enredo em relação ao então presidente. Ele passaria por figurante, não fosse a interpretação de Bemvindo Sequeira.
PATERNIDADE
Itamar questionou a paternidade do real reivindicada pelo PSDB – nunca escondeu a mágoa que carregou de Fernando Henrique Cardoso. Lembrou muitas vezes que o auxiliar se afastou do Ministério da Fazenda para concorrer à sucessão presidencial, deixando toda a execução do plano a cargo dos sucessores Rubens Ricupero e Ciro Gomes. O diretor Rodrigo Bittencourt já havia afirmado que o filme não era sobre políticos e não fazia apologia ao PSDB. Porém, não convenceria Itamar disso...
Ponto forte do filme está em mostrar como os rumos da economia são influenciados e contaminados pela política e o desejo de poder dos governantes e seus auxiliares, algo presente no Brasil da atualidade.
Há outro valor especial na produção de Bittencourt. Ainda que parte do público tenha perdido a memória do real ou não tenha vivido na época da criação da moeda, é certa a identificação com algumas das discussões importantes e pertinentes hoje no Brasil – o ajuste das contas públicas e a ética, sobretudo a falta dela, na política.
Abaixo, confira o trailer de Real – O plano por trás da história: