Realizada em todas as capitais, a 11ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos exibe até 14 de maio 29 filmes em BH

Produções têm destaque para a questão de gênero e homenagem para a diretora Laís Bodanzky

“Por que você faz cinema?”, perguntou o jornal Libération a mais de 700 cineastas do mundo inteiro em 1987. A resposta do diretor brasileiro Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) é certamente uma pérola. Ele devolveu ao diário francês um poema enumerando onze razões, entre as quais: “Para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito”. Resumiu no verso a compreensão do que é (ou pode ser) o próprio cinema: uma espécie de acareação das pessoas com sua embaraçada humanidade.

Humankind Production/Divulgação
O documentário 'Humano - Uma viagem pela vida', de Yann Arthus-Bertrand, explora a semelhança e as diferenças entre pessoas de diversos países (foto: Humankind Production/Divulgação)

Apostando no potencial transformador desse encontro, estreia hoje em Belo Horizonte, no Sesc Palladium, a 11ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos. Realizada simultaneamente em todas capitais brasileiras e no Distrito Federal, o evento exibirá gratuitamente, até 14 de maio, 29 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens que abordam racismo, saúde mental, direitos da população indígena, entre outros de igual relevância social.

 

A abertura ocorre amanhã, às 19h, com os curtas Depois que te vi, de Vinícius Saramago, e De que lado me olhas, de Carolina de Azevedo e Elena Sassi. A programação é organizada em quatro nichos. Na mostra temática, a pauta da vez é gênero – sem dúvida, uma das mais urgentes no Brasil, campeão mundial de assassinatos de pessoas trans. Segundo a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra), por aqui, a expectativa de vida dessa população não ultrapassa a média de 35 anos. Ou seja, nem a metade da média nacional, estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que é de 75,2.

O documentário Meu nome é Jacque (2016), de Ângela Zoé, é uma das produções que tocam nessa ferida. A obra apresenta ao espectador a transexual Jacqueline Côrtes. Militante da causa LGBT, Jacque tem vasto histórico de lutas contra a Aids e contra o preconceito, bandeiras que defendeu como representante do governo brasileiro na Organização das Nações Unidas (ONU). Hoje, ela mora numa cidade do interior, onde se dedica à maternidade e à família.

Num espectro ampliado da mesma discussão, a mostra ainda reúne filmes sobre violência contra a mulher, realidade em que o Brasil também é líder. Com uma taxa de feminicídios de 4,8 para cada 100 mil mulheres, ocupamos o quinto lugar no ranking mundial de nações que mais matam mulheres, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). A situação é ainda mais grave quando se trata do assassinato de mulheres negras, que apresentou crescimento de 54% na última década.

Para o debate sobre a questão, o festival traz, entre outros, o filme Precisamos falar sobre assédio (2016), de Paula Sacchetta. O enredo é costurado a partir de 26 desabafos de vítimas de qualquer tipo de assédio, entre 15 e 84 anos e de todas as classes sociais. Segundo a produtora-executiva da mostra, Luciana Boal, a diversidade não pautou apenas a curadoria do evento, ecoou também nos bastidores dele. “Exatamente a metade dos filmes selecionados têm mulheres na direção. E, não por acaso, a homenageada desta edição é a cineasta Laís Bodanzky”, conta.

RECONHECIMENTO Na mostra-homenagem dedicada à paulista Bodanzky, não faltou sua obra mais aplaudida, o longa Bicho de sete cabeças (2000). Progatonizado por Rodrigo Santoro, o filme reflete sobre a luta antimanicomial ao falar sobre a triste passagem do adolescente Neto por um manicômio, onde foi internado pela família por fumar maconha. Chega de saudade (2000) – sobre as dores e delícias da velhice – e As melhores coisas do mundo (2010) –  que permeia árduo percurso da adolescência – também estão na lista das obras da cineasta disponibilizadas em BH.
Paralelo Comunicação/Divulgação
A cineasta Laís Bodanzky: cinema para sonhar acordado (foto: Paralelo Comunicação/Divulgação)

O evento, destaca Laís, a faz se sentir em casa, pois vai ao encontro das convicções a que a diretora recorre sempre que tem que responder à mesma pergunta feita a Joaquim Pedro de Andrade. “Por que eu faço cinema? Entre outros motivos, porque é uma comunicação que fala direto ao coração. Porque ele é uma reunião de muitas artes, oferece muitas ferramentas para emocionar o público e possibilitar que o artista faça seu discurso, mas não de uma forma taxativa. É sempre por meio de um convite, que chama o espectador para sonhar acordado”, reflete.

Na mostra Panorama, montada sob temáticas variadas, o destaque vai para o longa francês Humano – Uma viagem pela vida (2015), de Yann Arthus-Bertrand. Com testemunhos e imagens aéreas exclusivas de diversas localidades do planeta, o documentário parte da questão “o que, afinal, nos torna humanos?”, para montar um retrato da humanidade, com suas semelhanças e diferenças.

As crianças, pela primeira vez, ganharam espaço especial na exposição – a Mostrinha. Oito filmes dedicados ao público infantil poderão ser conferidos na capital, entre os quais Imagine uma menina com cabelos de Brasil (2010), de Alexandre Bersot.


11ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos
De amanhã a domingo. Sesc Palladium
(Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro, (31) 3270-8100).
Entrada franca. Programação completa: www.facebook.com/mostracinemabelohorizonte.




DEPOMENTO

Laís Bodanzky
cineasta homenageada

Sem medo

“Todos os filmes que eu fiz me modificaram muito. Chega de saudade (2007), por exemplo, fez com que eu perdesse o medo de envelhecer. Quando iniciei a pesquisa para o filme, frequentei muitos salões de baile. E aí conheci muitas pessoas mais velhas que frequentam esses ambientes. E elas me mostraram que é possível envelhecer com qualidade de vida, com frio na barriga, correndo riscos, fazendo planos. Tive então essa sorte: descobrir, ainda na juventude, por meio do contato com as pessoas em idade avançada que conheci durante o processo de pesquisa e filmagem, que a vida tem muito a oferecer para a gente em qualquer tempo. Isso me acalmou. Hoje, o envelhecimento não me assusta mais.”

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